A Tenda dos Mártires e a Conferência de Aparecida

O lugar não poderia ser mais simples: às margens da BR 488, na entrada da ‘Capital da Fé’ ou Aparecida do Norte, como preferem chamá-la os devotos de Nossa Senhora Aparecida, a Mãe Negra, num terreno de chão batido, longe do centro da cidade. Esse foi o lugar que as CEBs juntamente com a Pastoral da Juventude, Operária, Carcerária e inúmeras outras pastorais sociais e organismos, encontraram para armar a Tenda dos Mártires durante toda a Conferência de Aparecida, de 13 a 31 de maio.

Impossível quem passar pela BR não ver a grande lona branca armada aos moldes de uma lona de circo, enfeitada com cartazes, faixas e símbolos que lembram o compromisso e a luta de uma Igreja pobre que opta pelos pobres. O que mais chama a atenção, no entanto, é a grande faixa que, no fundo da Tenda, sustenta os rostos e os nomes dos mártires da América Latina.

Engana-se quem pensa que os organizadores da Tenda estejam ali para protestar ou coisa que valha. Eles estão em sintonia com a V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe. ‘’A gente queria um espaço em que as pastorais sociais, os organismos e as CEBs pudessem expressar seu modo de rezar, de ser e de somar com a Conferência’’, explica, sem embaraço, o líder da Pastoral Operária, Eduardo Palodeci, de São Paulo, guardião da Tenda, dia e noite.

‘’A Tenda é um espaço de celebração, de reflexão, de acolhida, em união com a V Conferência. Foi uma decisão de 25 pastorais e entidades que vêm, há mais de um ano, se preparando para ter um momento de participação na Conferência. A gente queria, também, abrir um espaço de diálogo com a população aqui e com os que estão na V Conferência. Alguns bispos já vieram celebrar e estar conosco como, por exemplo, um dos EUA, outro de Las Cruzes, além dos brasileiros Dom Possamai e dom Stringhini’’, comenta padre Oscar Beozzo, um dos idealizadores da Tenda dos Mártires.

A Tenda abre o dia com o Ofício Divino das Comunidades. No início da tarde, a devoção a Nossa Senhora se revela na oração do terço e, à noite, a missa. Entre uma oração e outra, oficinas, teatros e encontros animam a comunidade. ‘’Todos os dias temos pessoas rezando pela V Conferência. Os bispos sabem que estamos aqui e estamos tendo uma interação muito grande com a comunidade, fazendo-a entender o que está acontecendo na Basílica’’, explica, satisfeito o lider da Pastoral Operária.

Celebração encarnada

Nesta sexta-feira, dia 25, a missa foi presidida por um padre chileno e concelebrada por um brasileiro e um holandês. O grupo não passava de 70 pessoas. Não havia violão nem qualquer outro instrumento ou coral. Ou melhor, havia, sim, um coral composto de dez crianças, cada uma portando como instrumento uma latinha de refrigerante com pedras. Esse era o único instrumento que dava ritmo às músicas entoadas por uma animadora das CEBs. O repertório, todo ele composto por Zé Vicente, cantava a esperança e o sonho de quem crê na vitória do ressuscitado.

Ao contrário dos grandes templos, ali todos sentiam a Tenda como sua casa. Sem cordas nem seguranças para barrar-lhes o acesso aonde quer que fossem, todos podiam se aproximar do altar e andar livremente para o encontro e o abraço fraterno antes da missa, sem a formalidade da acolhida tão presente em muitas igrejas.

Na assembléia, a presença do grupo Ameríndia fez ressaltar a diversidade cultural, característica da América Latina e do Caribe. Gente vinda do Chile, Uruguai, Colômbia e República Dominicana dava o tom da pluralidade. Leigos, religiosas e padres, todos juntos, sem nenhum distintivo que os distanciasse uns dos outros, era o retrato de uma Igreja comunhão e participação.

A liturgia, simples, mas bem preparada, destacada pelos símbolos que faltam nas celebrações da V Conferência, celebrava a memória dos mártires latino-americanos. No chão, em frente ao rústico altar, coberto de colchas de retalho com uma cruz ao lado, estavam fincadas cinco cruzes e desenhado o mapa da América Latina. Ao pé das cruzes, velas foram acesas em memória dos que deram a vida pela justiça no Continente da Esperança.

O chileno, padre Sérgio Torres, coordenador do grupo Ameríndia, presidiu a missa e, na homilia, fez o povo dar gargalhadas com seu ‘portunhol’. Mostrando que homilia é conversa familiar e não espaço de doutrinação ou catequese, brevemente falou da importância de todos estarem ali rezando pela Conferência. Ao final, ganhou da assembléia uma nota 10 pelo ‘portunhol’ e pela homilia.

Ele não escondeu sua emoção de celebrar na Tenda. ‘’Fiquei emocionado porque aqui tem dois mártires do Chile: padre Juan Alcino e padre Geraldo Poblete. Também nós, durante a ditadura do general Pinochet, pudemos expressar nosso protesto contra a ditadura, contra a violação dos direitos humanos e dois sacerdotes foram mortos’’, explicou emocionado. E falou do jeito do povo celebrar. ‘’Infelizmente há uma grande diferença entre as celebrações da Basílica que são muito formais e com pouca vida. Aqui é o contrário. A comunidade é cheia de vida, de alegria, de cantos. Esperamos que na próxima Conferência Geral esta vida do povo esteja presente lá dentro também’’.

A Tenda e a Conferência

Mas, que repercussão a Tenda tem ou pode ter na Conferência? Segundo Beozzo, pequena, embora o mais importante seja a base da Igreja se mostrar presente. ‘’ A Tenda representa esse esforço do chão da Igreja estar presente num evento que é eclesial. Lá tem bispos, mas também leigos, religiosas, padres, diáconos, representantes das Igrejas da África, Ásia, Europa, EUA Canadá. A Tenda quer marcar esse lado eclesial do evento porque ele vai abrir rumos para toda a Igreja, mas é importante que a base esteja presente também para dizer quais são seus clamores e sonhos para os seus pastores’’.

Tanto Beozzo quanto Torres se mostram otimistas em relação ao desfecho da Conferência. ‘’Temos que olhar o problema da fome, da violência, das enfermidades. A gente espera que o coração dos bispos esteja aberto para acolher essas dimensões todas e puxar juntos na mesma direção de superá-las’’, pondera Beozzo. ‘’O pessoal chegou aqui com pouca esperança. Pouco a pouco foi se criando novo espírito e agora existe um consenso que é necessário recuperar a tradição de Medellín e Puebla. Estamos contentes’’, resume padre Torres.

A Tenda se apresenta. Espaço da convivência, da celebração, da esperança, da alegria, da animação. Mesmo de longe e, para muitos, imperceptível, ela se torna o grito profético e o clamor esperançoso de que, na casa da Mãe Negra de Aparecida, os bispos saberão re-propor o caminho da opção pelos pobres e das Comunidades Eclesiais de Base como meio mais eficaz de tornar a Igreja viva num mundo que carece de justiça e de vida.

Tags:

leia também