Repercussões hermenêuticas da Cristologia Paulina

A fé em Jesus Cristo é a referência hermenêutica determinante da experiência e do sentido de compromisso do apóstolo Paulo bem como de sua teologia. Na mesma perspectiva, como já referido, Paulo relê a tradição bíblica e judaica à luz da fé em Jesus Cristo. É da fé em Jesus Cristo que ele extrai os critérios para elaboração dos seus ensinamentos e as intuições para a concretização da missão cristã. Não se trata de um processo meramente teórico de elaboração. Na verdade, suas atividades missionárias e de evangelizador constituem o contexto próprio de sua elaboração e configuração do seu entendimento a respeito da experiência cristã.

O uso da Sagrada Escritura é abundante na elaboração teológica que Paulo produz, seja para a configuração da ética cristã, seja para delinear o sentido da esperança escatológica. O cumprimento das referências messiânicas em Jesus Cristo leva o apóstolo a reler com uma nova iluminação um conjunto grande de textos bíblicos.  Conhecedor da tradição midráschica como método rabínico para leitura atualizante  da Bíblia, bem como pesher da escola qumrânica , facilita a Paulo esta configuração de uma nova perspectiva hermenêutica para a leitura e atualização dos textos da Escritura. Nessa nova perspectiva hermenêutica, a iluminação determinante vem da pessoa de Jesus Cristo. Essa fé cristológica, de força hermenêutica determinante, não significa para Paulo um conhecimento meramente teórico ou de simples caráter histórico. A este tipo de conhecimento ele qualifica de ‘conhecimento segundo a carne (IICor 5,16) O que conta para Paulo é o encontro com Jesus Cristo “constituído Filho de Deus”, ressuscitado dentre os mortos (Rm 1,3). É a ressurreição que, naturalmente, determina e configura essa força própria da pessoa de Cristo como critério hermenêutico insubstituível para a releitura e compreensão dos textos da escritura e da própria vida. A morte de Cristo, seguida de sua ressurreição, é a fonte inesgotável do amadurecimento da Cristologia de Paulo, tornando-se o núcleo central do querigma/kérygma que ele recebeu e anuncia como fundamento de sua fé cristã. É a morte de Cristo Ressuscitado que tem a propriedade de configuração de sua perspectiva de fé. Assim, sua fé cristológica é configurada a partir de muitos títulos atribuídos a Cristo, como ‘Senhor’, ‘Filho’, ‘Salvador’. Na epístola a Tito, ele sublinha que os cristãos vivem na espera da vinda do “nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo” (Tt 2,13), reafirmando o seu papel único e insubstituível de mediador, evitando qualquer tipo de favorecimento de compreensão e práticas sincréticas. Essa mediação única e insubstituível de Cristo o localiza também numa relação única com Deus. Usando emprestada a linguagem da Bíblia, em referência à sabedoria criadora e reveladora que é chamada de ‘imagem’ de Deus, Paulo apresenta Cristo como ‘imagem de Deus’ e o ‘primogênito’ (cf. IICor 4,4; Rm 8,29; Cl 1,15). Não menos importante é o uso que ele faz da tradição cristã primitiva para a formulação de sua fé cristológica. Essa tradição cristã tem seu eco na invocação de Jesus Cristo como Senhor, como aparece em ICor 16,22: “Se alguém não ama o Senhor, seja anátema. Maraná thá, vem, ó Senhor”. Bem assim, Jesus é proclamado Senhor no contexto da experiência batismal, na liturgia eucarística e batismal, um critério determinante para reconhecer a autenticidade das manifestações carismáticas na comunidade de Corinto: “Ninguém pode dizer ‘Jesus é Senhor’, a não ser pelo Espírito Santo” ( ICor 12,3).

É, pois, evidente que a cristologia paulina determina o horizonte de compreensão e significação de todas as demais perspectivas de sua teologia.

Do ponto de vista antropológico:

Paulo tem uma concepção cuja caracterização se define a partir da relação do ser humano com Jesus Cristo.  Ele, Cristo, é uma espécie de selo de autenticidade da existência cristã. Assim Paulo compreende que todos aqueles que estão unidos a Cristo e com Ele formam um ser vivo único, participando de sua condição de Filho, são capacitados para tanto em razão de inserção batismal por meio da fé. Na condição de batizados, inseridos em Cristo, compartilham com sua condição de crucificado e ressuscitado. Tal intimidade traz ao crente a vitória sobre o pecado e, conseqüentemente, sobre a morte, o fruto do pecado. Paulo ensina, pois, que essa união a Cristo concede aos crentes a condição de viver a vida segundo um estatuto novo conduzido pelo dom do Espírito. A vida do crente, pois, é entendida como um contrato com Cristo. Um contrato que lhe garante a superação e a vitória sobre a morte:

“Sabemos que o nosso homem velho foi crucificado com Cristo, para que seja destruído o corpo sujeito ao pecado, de maneira a não mais servirmos ao pecado. Pois, aquele que morreu está livre do pecado.” (Rm 6,6-7)

É importante sublinhar que Paulo, ao focalizar que o corpo permanece por si vinculado ao regime do pecado e da morte, não está propondo uma antropologia de tipo dualista. A linguagem antropológica de Paulo nada tem a ver com o dualismo dos filósofos gregos. É verdade que ele retoma alguns elementos da antropologia grega para indicar o ser humano total, como em ITs 5,23, “espírito, alma e corpo”. Mas, ao associar as paixões e os desejos do ser humano ao regime do pecado, Paulo entende a condição do ser humano sob o domínio do pecado enquanto um ser ou viver na carne. Por isso, ele fala dos desejos da carne que são contrários aos desejos do espírito. Os desejos da carne conduzem à morte; e os desejos do espírito conduzem à vida (Cf. Gl 5,16-23; Rm 8,5-8). Por isso também, Paulo, ao falar de imortalidade e de incorruptibilidade, ele atribui essas qualidades ao corpo dos ressuscitados, diferentemente dos filósofos gregos que o fazem em referência à alma ou ao espírito.

Assim, ele compreende que a presença e ação salvífica de Cristo é determinante no dinamismo da justiça e da vida na história humana. Assim como o primeiro Adão, com o pecado, introduziu a morte no mundo, Cristo, o Adão definitivo, é a origem de uma nova humanidade. Essa perspectiva comprova sua compreensão de Cristo, como aquele que é solidário com todos os seres humanos:

“Por um só homem que pecou, a morte começou a reinar. Muito mais reinarão na vida, pela mediação de um só, Jesus Cristo, os que recebem o dom gratuito e transbordante da justiça.” (Rm 5,17)

É forte e determinante, portanto, que Cristo Jesus é a opção para o ser humano na vivência dramática de sua condição. Paulo, em Rm 7,18-13, descreve essa dramaticidade. Termina exclamando: “Infeliz que eu sou! Quem me libertará deste corpo de morte?” (Rm 7,24) A resposta a essa pergunta está na iniciativa de Deus Pai que mediante o envio de Jesus Cristo, o Filho, eliminou o pecado e assim tornou possível o que jamais a lei poderia alcançar, a plena realização da justiça de Deus.

Essa radical mudança da situação dos crentes, por meio de Cristo, é o que Paulo entende como uma nova criação. Por isso ele proclama: “Ser ou não ser circuncidado não tem importância; o que conta é ser nova criatura.” (Gl 6,15)

Do ponto de vista da eclesiologia:

A cristologia Paulina também configura o tecido da sua eclesiologia. A atividade apostólica de Paulo, mediante o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo, dá origem, nas grandes cidades da Ásia e da Grécia, a pequenos grupos de cristãos que se reúnem nas casas de pessoas abastadas. O triclínium de uma casa romana do I século comportava trinta a sessenta pessoas. Eram pequenas comunidades domésticas chefiadas por um casal cristão. Tais comunidades se encontravam em assembléia para a celebração da Ceia do Senhor, ou a solene oração comum. Tudo celebrado em memória da ressurreição do Senhor ( I Cor 16,2). Paulo, então, fala da “Igreja de Deus”, herança da tradição bíblica que designa o povo convocado por Deus no contexto da aliança. É o anúncio do Evangelho de Jesus Cristo que convoca e configura  a comunidade igreja. Na I Ts 1,1, Paulo fala da ‘Igreja dos Tessalonicenses que está em Deus Pai e no Senhor Jesus’.  Paulo compreende que a Igreja é convocada por iniciativa gratuita de Deus. Na medida em que se acolhe o Evangelho de Jesus Cristo por meio da fé nasce a Igreja. Na sua linguagem eclesial Paulo inclui a expressão ‘o corpo de Cristo’ / ‘o corpo do Senhor’. Sua intenção é indicar um horizonte que ajude a superar as diferenças sociais e possíveis divisões, nascidas da tendência de privilegiar grupos que se reúnem nas casas, presididos por pessoas carismáticas ou de prestígio. É uma advertência para a importância da comunhão eclesial que não pode ser ferida. É o que vem tratado na I Cor 11, 17-22, especialmente no contexto da Ceia do Senhor, quando não se privilegiam os mais pobres, respingando, como ele observa, na Igreja de Deus que corre o risco de perder a credibilidade. Ora, o apóstolo recorda à Igreja que a Ceia do Senhor é a celebração de sua memória. Pois, quando se come deste pão e se bebe deste cálice, se está anunciando a morte do Senhor até que Ele venha. É preciso, à luz desta verdade, refletir sobre o próprio comportamento: “Examine-se cada um a si mesmo, e assim, coma do pão e beba do cálice, pois quem come e bebe sem distinguir devidamente o corpo, come e bebe sua própria condenação” (ICor 11,28-29). Fica claro que para Paulo há uma íntima interligação entre o corpo do Senhor e a Igreja de Deus. Os próprios dons vividos e recebidos na Igreja têm a ver  e são possíveis quando se professa e se vive a fé como reconhecimento de que Jesus é o Senhor.

Do ponto de vista da escatologia:

A compreensão escatológica na teologia Paulina se expressa bem com a figura do atleta que se lança na corrida. É preciso viver para alcançar a meta. Seu testemunho significativo focaliza que foi agarrado por Jesus Cristo “visando ao prêmio ligado ao chamado que, do alto, Deus nos dirige em Jesus Cristo” (Fl 3,14). Ele completa:

“ Nós, ao contrário, somos cidadãos do céu. De lá aguardamos como Salvador o Senhor Jesus. Ele transformará o nosso corpo, humilhado, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso, graças ao poder que o torna capaz também de sujeitar a si todas as coisas” (Fl 3,20-21).

É fácil concluir que o entendimento escatológico de Paulo se localiza no contexto da fé em Cristo Jesus, o Senhor Ressuscitado. Ele entende, pois, que a realidade última é a realização daquela relação com o Senhor Jesus, relação vivida agora por ele na fé. Os que crêem e vivem essa fé são associados a Cristo na sua vitória. A espera escatológica, a parusia, é a experiência máxima desta realização de encontro.É o momento definitivo da vitória sobre a morte porque os que estão mortos ressuscitarão para estarem todos e para sempre ‘com o Senhor’ (ITs 4,17; I Cor 15,52). Paulo gostaria de passar para a vida definitiva sem experimentar a morte, por ser esta um trauma e uma ameaça angustiante (cf. II Cor 5,1-5). Contudo, ele reconhece que o ser humano não está preparado agora para o reino de Deus. Por isso diz: “É necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade, e que este ser mortal revista a imortalidade” (I Cor 15,53). Esta é a vitória definitiva de Cristo sobre a morte.

É óbvio, portanto, que a compreensão escatológica de Paulo passou por mudanças quando ele se tornou discípulo de Jesus Cristo. Por exemplo, não é evidente que a concepção judaica concebesse duas vindas do Messias. Mas Paulo crê nessas duas vindas. Na verdade, Paulo passa a ler a história numa perspectiva de caráter escatológico. Ora, a morte de Cristo tinha desarmado o mecanismo das forças sobrenaturais do mal. O crente já não pode mais ser separado do amor de Deus por causa da morte redentora de Cristo. Ele afirma que a figura deste mundo passa (ICor 7,31), mas ainda não tinha passado. O cristão era já uma nova criatura sem, contudo, ter experimentado fisicamente a ressurreição, a plena redenção do corpo (Rm 8,21-22). A fé cristológica de Paulo muda, alargando, sua compreensão escatológica porquanto não havia nenhuma evidência no Judaísmo primitivo expectativas de uma ressurreição individual, menos ainda uma ressurreição isolada do Messias antes da ressurreição dos crentes. Ele faz, pois, uma íntima conexão entre a ressurreição de Jesus e a ressurreição dos crentes (ICor 15).

Do ponto de vista da Soteriologia:

No âmbito da soteriologia também se constata uma nova configuração da compreensão teológica paulina a partir da sua fé cristológica. Não existe até o momento nenhuma evidência, por exemplo, de que houvesse expectativas nos judeus seus contemporâneos, da existência de um Messias crucificado. A história da morte e ressurreição de Jesus leva Paulo a repensar como a salvação aconteceria. Ele mesmo diz que essa mensagem era um escândalo para os judeus e tolice para os gregos (ICor 1,23).

Mesmo a significação do Servo Sofredor de Is 53 não tem evidências de ser entendido pelo Judaísmo primitivo como referência à vinda do Messias, assim como foi aplicado ao ministério de Cristo. Nem mesmo o texto de Dt 21,23, ao falar da maldição de ser pregado no madeiro, refere-se ao Messias sofredor. Paulo, então, passa a compreender a salvação como um ‘já e ainda não’. Paulo trata amplamente tal questão em Rm 9-11, referindo-se particularmente ao plano de salvação de Deus para os judeus.

Outras observações:

A Cristologia Paulina, portanto, causou impacto mesmo fora do contexto cristão primitivo. Por exemplo, é grande sua influência na chamada Carta aos Hebreus, como no 4º. Evangelho. No 4º. Evangelho se encontra uma compreensão de exaltação na morte sacrifical de Cristo, associando-o ao cordeiro pascal. Assim como a pneumatologia do 4º. Evangelho é relacionada com a compreensão da morte e ressurreição de Cristo (Jo 14,18-21). Pode-se constatar sua influência na IPedro e na IIa.

Um aspecto singular da Cristologia Paulina, como força de impacto, é o uso da fórmula ‘em Cristo’, para falar da união espiritual profunda entre Cristo e os cristãos. Esse é um conceito desenvolvido por Paulo sem paralelo no cânon do Novo Testamento. Essa é uma singularidade do modo como Paulo vê a condição daquele que crê inserido em Cristo. É a graça de Deus que realiza o processo de inserção e configuração do crente na morte e ressurreição de Cristo. Assim, a união do que crente com Cristo no seu corpo faz deste um em Espírito com Cristo.

Uma observação importante é que em Paulo não se encontra a referência de Jesus como o Filho do Homem, distinguindo-se dos Evangelhos. Paulo usa, na verdade, a tipologia do novo Adão. Portanto, Paulo se inspira mais no Gênesis do que em Dn 7 ou Ezequiel. A cristologia do Filho do Homem não focaliza com a perspectiva do novo fundador da nova raça do ser humano. Nesse sentido, a teologia do novo Adão é mais universal do que aquela do Filho do Homem. A teologia do novo Adão trabalha com o conceito de ser humano, abrindo espaço para inclusão tanto de judeus quanto de gentios, já que são humanos igualmente.

A Cristologia Paulina sempre impactou na história. Por isso mesmo, ela é central, até mesmo eclipsando outras cristologias no Novo Testamento. É uma cristologia complexa, desafiando a todo tipo de trabalho que tenta fazer um seu sumário. Suas partes não facilitam esta possível pretendida síntese. Para se compreender isso se diz que a Cristologia Paulina é fundamentada na história sagrada de Cristo que, por sua vez, tem suas raízes na história de Israel, como configuração da história de toda a raça humana.

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte

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