Dom José Ionilton Lisboa de Oliveira
Bispo da Prelazia de Itacoatiara – Amazonas

No domingo da oitava da Páscoa, tivemos como primeira leitura o texto dos Atos dos Apóstolos (2, 42-47). Lucas diz que os primeiros cristãos eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos Apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações. Faz bem para nós, Comunidades do século XXI, refletir sobre cada um destes aspectos para avaliarmos nossa perseverança hoje.

Gostaria, no entanto, de aprofundar melhor neste artigo, outras características das primeiras comunidades, segundo Lucas:

a) Viviam unidos e colocavam tudo em comum: Podemos dizer que este modo de vida das primeiras comunidades deve inspirar nosso jeito de ser Igreja hoje e, também, nosso compromisso com uma sociedade mais justa e fraterna, fundamentada no bem comum. Podemos afirmar, sem medo de errar, que é isto que falta na Igreja e na Sociedade no mundo e no Brasil: valorizar o que é de interesse comum. O Compêndio da Doutrina Social da Igreja nos lembra que “o zelo pelo bem comum exige que se aproveitem as novas ocasiões de redistribuição de poder e riqueza entre as diversas áreas do planeta, em benefício das mais desfavorecidas e até agora excluídas ou à margem do progresso social e econômico” (nº 363) e que o assumir o bem comum se torna a finalidade e o critério regulador da vida pública (cf. nº 407). O Texto Base da Campanha da Fraternidade deste ano diz que “a caridade social nos leva a amar o bem comum e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas” (nº 117). Esta caridade social “se expressa no empenho e na atuação política dos cristãos e das Comunidades Eclesiais Missionárias” (Texto Base CF/2020, nº 120). Esta atuação política é um ato de caridade indispensável, que tem por objetivo “organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não venha a se encontrar na miséria” (Texto Base da CF/2020, nº 124).

b) Repartiam o dinheiro conforme a necessidade de cada um: Perguntemo-nos: na Igreja e na sociedade o dinheiro é repartido assim como nas primeiras comunidades, conforme a necessidade de cada um? Como anda a comunhão e a partilha entre as Comunidades de uma mesma paróquia, entre as paróquias de uma mesma diocese ou prelazia, entre as dioceses e prelazias de um mesmo regional, entre os diversos regionais de uma mesma conferência episcopal? E na organização da sociedade quem tem mais recursos paga mais impostos, para isentar quem tem menos recursos de pagar impostos? Ou os riquíssimos, os ricos, a classe média, os pobres e os empobrecidos pagamos impostos todos do mesmo jeito? O dinheiro público, gerado pelos impostos, é distribuído conforme a necessidade de cada um, como nas primeiras comunidades? Quem recebe mais benefícios com o dinheiro público? Dar conforme a necessidade de cada um é o que se chama de equidade, ou seja, deve receber mais quem precisa mais. Podemos aqui recordar o princípio da destinação universal dos bens, que comporta um esforço comum com o objetivo de “obter para toda pessoa e para todos os povos as condições necessárias ao desenvolvimento integral, de modo que todos possam contribuir para a promoção de um mundo mais humano, onde cada um possa dar e receber, e onde o progresso de uns não seja mais um obstáculo ao desenvolvimento de outros, nem um pretexto para a sua sujeição” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 175).

c) Partiam o pão pelas casas: Tem um canto de nossa Igreja que nos ensina a partilha, quando em uma de suas estrofes faz-nos rezar: “Dar um pouco do que tem, a quem tem menos ainda, enriquece o doador, faz a vida ainda mais linda”. Esta experiência das primeiras comunidades, faz-nos entrar em sintonia com a Campanha “É tempo de cuidar” da CNBB e da Caritas Nacional, inspirada, por sua vez, no lema da Campanha da Fraternidade de 2020: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”. Podemos confirmar o que dizem os Bispos da América Latina e do Caribe, reunidos em Aparecida (SP) no ano de 2007, em seu Documento Final: “Alegra-nos o profundo sentimento de solidariedade que caracteriza nossos povos e a prática de compartilhar e de ajuda mútua” (nº 99g). Jesus nos ensina a partilhar o pão. Duas vezes ela sente compaixão das pessoas que lhe escutavam e determina aos apóstolos que providenciem o alimento para as pessoas (cf. Mc 6, 33-44; 8, 1-9). No primeiro relato, Marcos narra que os apóstolos queriam que Jesus mandasse embora o povo com fome (cf. Mc 6, 36). Jesus não aceita a proposta egoísta dos apóstolos e determina que eles dessem comida ao povo, partissem o pão, como de fato, aconteceu (cf. Mc 6, 41-43). No segundo relato, Marcos diz que Jesus toma a iniciativa, por compaixão, de querer alimentar o povo que lhe escutava (cf. Mc 8, 3). Os apóstolos colocam dificuldade, querendo fazer Jesus desistir de ser solidário, praticar a partilha e combater a fome (cf. Mc 8, 4). Mas Jesus não aceita a proposta deles e novamente sacia a fome das pessoas (cf. Mc 8, 8). As primeiras comunidades por certo partiam o pão nas casas, inspiradas nestas ações de Jesus. Nós hoje, século XXI, devemos fazer como Jesus e como as primeiras comunidades: saciar a fome dos famintos, através da partilha solidária. Somente quem age assim, a festa irá celebrar: “Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome e me destes de comer” (Mt 25, 34-35). Seguindo o jeito de ser e viver de Jesus, no que diz respeito à realidade das pessoas com fome, o Papa Francisco falando a juízes no Vaticano disse: “Não existe democracia com fome, desenvolvimento com pobreza nem justiça com iniquidade” (citado pelo Texto Base da CF/2020, nº 131).

d) Louvavam a Deus: observemos como o louvor vem depois de terem colocado tudo em comum e de terem repartido o pão. Louvor sem compromisso com os pobres vira exibicionismo, farisaísmo, hipocrisia. Jesus mesmo disse isto dos fariseus, anciãos e doutores da lei: “O Profeta Isaías bem profetizou a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. É inútil o culto que me prestam, as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’” (Mc 7, 6-7). Podemos, também, lembrar de outra passagem do Profeta Isaías, neste contexto de um louvor sem repercussão na vida: “Parai de trazer oferendas sem sentido! Incenso é coisa aborrecida para mim! Lua nova, sábado, celebração solene…, não suporto maldade com festa religiosa… Quando estendeis as mãos para mim, desvio o meu olhar. Ainda que multipliqueis as orações, de forma alguma atenderei, porque vossas mãos estão sujas de sangue” (1, 13.15). Recordemos o que diz o Documento de Aparecida: “Lamentamos algumas tentativas de voltar a um certo tipo de eclesiologia e espiritualidade contrárias à renovação do Concílio Vaticano II e nossas débeis vivências da opção preferencial pelos pobres” e “percebemos uma ênfase no ritualismo sem o conveniente caminho de formação… Preocupa-nos uma espiritualidade individualista” (nº 100b-c). O Texto Base da CF/2020, nº 176 nos traz uma afirmação do Papa Francisco em Bañado Norte, Paraguai, em julho de 2015: “A fé nos faz próximos, aproxima-nos da vida dos outros. A fé desperta o nosso compromisso com os outros, desperta a nossa solidariedade… A fé que não se faz solidariedade é uma fé morta. É uma fé sem Cristo, uma fé sem Deus, uma fé sem irmãos”. Neste sentido da fé que se faz solidariedade, podemos lembrar do que o Papa Francisco fala na Exortação Apostólica Querida Amazônia: “O Evangelho propõe a caridade divina que brota do Coração de Cristo e gera uma busca da justiça que é inseparavelmente um canto de fraternidade e solidariedade, um estímulo à cultura do encontro” (nº 22).

Uma Comunidade Cristã do século XXI, que se inspira e atualiza o jeito de viver das primeiras comunidades cristãs, que Lucas nos faz um retrato no livro dos Atos dos Apóstolos, poderá cantar como as CEBs cantam: “Eu sou feliz é na comunidade; é na comunidade que eu sou feliz!” e “pão em todas as mesas, da páscoa a nova certeza, a festa haverá e o povo cantar, aleluia”.

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