Um dos comentários que em toda a minha vida mais me chocou e por isso ficou indelevelmente gravado em minha memória se refere aos povos indígenas do Xingu. Havia chegado há pouco tempo em Belém, cheio de entusiasmo e muito esperançoso quanto ao meu futuro. Não tive nenhuma dúvida que, mesmo com apenas 26 anos, fizera um passo decisivo em minha vida. Ordenei-me padre e queria ser “missionário“ com toda conotação que essa palavra ainda carregou nos idos de 1965.

Aprendi o português brasileiro com muito empenho e carinho e logo que dispus do vocabulário indispensável para entabular uma conversação dirigi-me a pessoas queridas e atenciosas que em Belém do Pará me cercavam nas primeiras semanas. Perguntei a respeito dos índios.

Dois tios, irmãos da minha mãe, chegavam a essas plagas em 1934. O tio Padre Eurico muito escrevia sobre a sorte dos indígenas no Xingu e todo o seu empenho em favor deles. Suas palestras, recheadas de slides tirados nas aldeias tornaram-se inesquecíveis, quando de sua primeira visita à terra natal depois de 14 anos de Amazônia. Escrevia um livro intitulado “Sepultada nas selvas do Xingu“ que contava a história da menina Carminha raptada pelos Kayapó e posteriormente libertada pelo índio Patoit. Tornou-se um “best-seller“ na década de 50. Assim minhas perguntas foram absolutamente compreensíveis.

Bem eu sabia que era impossível dedicar-me logo mais à causa indígena. Teria que inculturar-me primeiro na nova pátria, aprender a língua portuguesa, assimilar usos e costumes da Amazônia, seguir as tradições queridas, os ritos e a religiosidade do povo que me acolheu e que doravante seria meu povo. Mas no horizonte de meu “projeto de vida“ já figuravam os índios, cuja causa queria assumir. Não foi mero romantismo de missionário novo, inexperiente, sonhador. Foi algo que pertencia ao meu imaginário desde a infância, desde que ouvi pela primeira vez o meu tio imitar as danças rituais dos Kayapó e emitir os sons que acompanham os movimentos rítmicos. Patoit, Aibí, Kanhok são nomes de caciques que já constavam de meu mundo de infância. De Patoit e sua mulher existe até hoje uma quadro na casa da minha família. Falava-se do casal como se os dois fossem parentes, morando somente à uma certa distância, “nas selvas do Xingu“.

E agora simplesmente queria saber dos amigos se conheciam os Kayapó. Para minha surpresa, só ouviram falar desse povo pelas histórias que o próprio Padre Eurico, meu tio, contava. O Xingu mesmo era para eles apenas mais um rio, bem distante de Belém, habitado por “índios ferozes e selvagens“.

Aconselharam-me não gastar tempo pensando em índio, pois o Brasil não era um país indígena e, além do mais, os índios que ainda existiam estavam todos em fase de extinção. Para um missionário novo seria melhor – assim me recomendaram – investir a energia em catequizar e ajudar o povo nas cidades, vilas e povoados do interior e visitar as pobres famílias ribeirinhas que precisavam de Padre para batizar os seus filhos e rezar com elas, além de fazer coletas em favor delas. Era preciso comprar mosquiteiros para se defenderem dos carapanã responsáveis pelos surtos de malária que infestaram a região. Esse povo pobre trabalhava nos seringais e castanhais, na pesca e na agricultura rudimentar, mas o que conseguia com o suor derramado não dava para sustentar-se. Já naquele tempo perguntei-me, por que essa gente estava na miséria, já que trabalhava tanto.

Finalmente, o comentário a respeito dos índios que me abalou até o âmago foi esse: “São uns caboclos traiçoeiros que roubam e matam cristãos. Se Deus quiser, daqui a vinte anos não existe mais nenhum deles!“ Que ducha de água gelada em pleno verão tropical! Ainda bem, que não acreditei nesse vaticínio fatídico de apenas vinte anos de sobrevivência para os povos indígenas.

Mas me perguntei: por que estão falando dos índios desse modo? Nas veias da maioria de meus amigos – mesmo que se recusem de admiti-lo – não corre o sangue de ancestrais indígenas? Por que agora querem acelerar a morte destes povos? Por que querem esmagá-los, eliminá-los da terra? A experiência daquele tempo foi apenas um prenúncio de futuras controvérsias com políticos e contendas com empresários e comerciantes a respeito dos índios, de lutas e defesas em torno da causa indígena que assumimos que não nos trouxeram apenas vitórias, mas também tremendas hostilidades e agressões.

Em agosto de 1987, enquanto a Assembléia Nacional Constituinte estava em curso, fomos acusados de todo tipo de crime de lesa-pátria por defendermos a dignidade dos povos indígenas e pleitearmos a inscrição de seus direitos na Carta Magna do Brasil. Durante cinco dias o jornal de maior circulação no país publicou matérias caluniosas e difamações explícitas, documentos falsificados ou inexistentes contra o Conselho Indigenista Missionário – CIMI – cujo presidente eu era já naquele tempo, querendo com essa iniciativa colocar em total descrédito toda a nossa luta por parâmetros mais favoráveis aos povos indígenas na Constituição Federal. Queriam, a todo custo, enfraquecer a presença do CIMI nas articulações da Assembléia Nacional Constituinte. A criminalização do CIMI teve por consequênca a instauração de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que ouviu os representantes do jornal que comandou a campanha, e examinou os documentos que fundamentavam as denúncias. Também eu aguardava o chamado para depor diante da Comissão. Estava plenamente seguro de que iria desmascarar a tramóia, pois estava munido de um dossiê completo que comprovava como infundadas e caluniosas todas as acusações. Mas, em vez de viajar a Brasília, fui vítima de um misterioso acidente automobilístico[1], até hoje não esclarecido, que ceifou a vida de um jovem Padre e me confinou por seis semanas numa enfermaria do Hospital Guadalupe em Belém. Quebrei literalmente a cara, mas o Dr. Cláudio Brito, cirurgião paraense muito experiente e competente uniu por fios metálicos meus ossos faciais e um famoso cirurgião dentista, desta vez austríaco, implantou na minha boca a terceira dentadura que, assim espero, seja a última. Depois de ter alta do hospital, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito não achou mais necessário chamar-me para depor. Mesmo assim, o parecer final do relator da comissão concluiu pela total falsidade dos documentos mencionados pelo jornal denunciante, e propôs a remessa do material e do relatório ao Ministério Público, dadas as evidências de falsidade ideológica. Mas nada mais aconteceu! Mesmo com muitas dores sofridas para completar “o que falta às tribulações de Cristo“ (Col 1,24) e  lágrimas vertidas pela morte de um Padre entusiasmado pela Amazônia, festejamos juntos com os povos indígenas a vitória de serem inscritos os seus direitos na Constituição Federal.

A pergunta crucial que se levanta diante da causa indígena, há muito tempo exige uma resposta: Por que essas posições anti-indigenas, essas ondas de hostilidade contra os descendentes dos primeiros habitantes do Brasil, que sempre de novo se levantam e conspurcam inclusive a imagem do Brasil no concerto internacional das nações? Qual é a razão profunda ou primordial que motiva as agressões abertas e veladas contra esses povos? A resposta é curta e simples! O problema não consiste no fato de terem uma língua materna diferente. Não são suas tradições culturais, seus ritos e mitos, suas danças e festas que atrapalham. O problema consiste na terra que ocupam, a terra que poderosas forças neste País continuamente negam a eles. Quando meus amigos de Belém nos idos de 1965 prenunciaram a morte dos índios do Xingu, não se preocupavam com os Kayapó como povo diferenciado da sociedade envolvente, mas como povo que defende seu hábitat, que se levanta contra intrusos e guerreia contra aqueles que invadem suas aldeias. Os índios têm que ser eliminados para que se tenha acesso às suas terras e às riquezas naturais nelas existentes, tanto no solo como no subsolo. Essa á a questão!

A Amazônia é na realidade de hoje uma região habitada por “toda raça, língua, povo e nação“ (Ap 5,9). Creio que não haja no mundo inteiro algo semelhante em termos de encontro de raças e culturas. Mas, o que geralmente é esquecido, na Amazônia há também diversas línguas. Só no Xingu, existem todos os troncos linguísticos da América. Não se trata de dialetos como muitas vezes se afirma no afã de descaracterizar um idioma reduzindo-o a uma gíria ou um regionalismo idiomático. São línguas com toda uma esmerada gramática e vocabulário expressivo, mesmo que não tão volumoso como o da “última flor do Lácio“.

Na histórica Marcha dos Povos Indígenas, realizada em 2000 no contexto dos 500 anos em Porto Seguro, BA, os Índios da Amazônia carregaram uma faixa com os dizeres: “Reduzidos sim, vencidos nunca!”. De fato, há milhares de anos, a Amazônia é seu lar, sua pátria, o chão de seus mitos e ritos, a ambiente próprio para suas danças e crenças, a terra em que sepultaram seus ancestrais. A idade cientificamente provada das pinturas rupestres na Caverna da Pedra Pintada em Monte Alegre (PA), mostrando mulheres e crianças saindo para colher castanha-do-pará e homens no meio da mata úmida caçando anta, derruba definitivamente a tese da ocupação do continente há somente 12.000 anos. Esses “paleoíndios“ viviam na Amazônia já há muito mais tempo. Através dos milênios se adaptaram às florestas tropicais criando uma cultura superior à de outros pré-históricos de sua época[2]. Os índios de hoje são os descendentes e remanescentes de outrora vigorosos povos que através dos séculos foram dizimados em perseguições implacáveis, guerras de extermínio ou por doenças criminosamente introduzidas. Foram escravizados e deportados ou então submetidos a programas de “integração“ compulsória à sociedade que orgulhosamente se autodenomina de “nacional“.

A chegada das naus de Pedro Álvares Cabral mudou a história deste país continental e também da Amazônia. O Monte Pascal, na realidade, nada tem de Páscoa – Ressurreição para os povos que habitavam até então este mundo de selvas e águas, de praias douradas e paisagens exóticas, ainda do jeito como Deus as criou. Uma arrasadora invasão que posteriormente em todos os livros de história, desde o ensino fundamental, seria chamada e enaltecida como “descobrimento“, deu início ao Calvário dos Povos autóctones destas plagas, à Sexta-feira Santa da Paixão e Morte que perdura até os dias de hoje. Para esses povos ainda não alvoreceu o dia da Páscoa, em que a vida vence a morte, a paz, como “fruto de justiça“ (Is 32, 17), triunfa sobre a guerra de extermínio e da desapropriação forçada. Chegaram os colonizadores do velho continente. Para eles sim, este continente foi uma descoberta! Vieram para que? Queriam o que? Ávidos de terras e das riquezas do solo e subsolo, conquistaram o espaço a ferro e fogo. “Fidalgos“ em missões oficiais e simultaneamente em busca de fortunas fabulosas aportaram ao lado de delinquentes e degredados, expulsos de Portugal e até marinheiros desertores. Outras nações européias, especialmente os holandeses, estavam igualmente interessadas na Amazônia. A ocupação portuguesa consolidou-se definitivamente em 1616 com a fundação do Forte do Presépio na baía do Guajará, que deu origem à cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará. E o resultado da investida européia na Amazônia deixou profundas marcas. Padre Antônio Vieira lamenta já no ano 1662 em seu famoso sermão da Epifania diante da coorte de Portugal: “Querem que tragamos os gentios à fé, e que os entreguemos à cobiça; querem que tragamos as ovelhas ao rebanho, e que as entreguemos a Herodes. (…) (Hoje) estão destruídas e desabitadas todas aquelas terras em tão poucos anos; e de tantas e tão numerosas povoações, de que só ficaram os nomes, não se vêem hoje mais que ruínas e cemitérios“[3].

Os indígenas não estavam acostumados a trabalhos forçados e morriam extenuados. Para compensar esta mão de obra perdida, outro continente foi assaltado. Milhares e milhares de homens e mulheres foram trazidos da África como escravos. Muitos nem chegaram vivos neste lado do Atlântico. Os que chegaram à Amazônia tornaram-se em sua grande maioria escravos de engenhos. Muitos morreram de banzo[4].Todos choraram inconsoláveis a pátria perdida. Ainda hoje cantam e dançam emocionados os cantares e ritmos que a mãe África lhes legou. As festas dos santos padroeiros na Amazônia têm características negras misturadas com indígenas. As novenas e ladainhas cantadas e batucadas e noites dançadas ao som de tambores e tamborins, de curimbó e maracá, de reco-reco e xeque-xeque espelham a alma africana nos amazônidas.

No século XIX a extração do látex das seringueiras da Floresta Amazônica adquiriu grande importância econômica e atraiu dezenas de milhares de migrantes do nordeste brasileiro e despertou o interesse de grandes companhias extrativistas européias e norte-americanas. O látex foi elevado à categoria de matéria-prima industrial a partir de 1823, com a descoberta da impermeabilização por MacIntosh, nesse mesmo ano, e da vulcanização, por Goodyear, em 1839. Até 1850, a exploração da borracha estava restrita à região de Belém e às ilhas. Os primeiros rios a serem utilizados para o transporte comercial foram o Xingu e o Tapajós, depois o Amazonas até atingir o Solimões, o Purus, o Alto Madeira e o Juruá. Nessa época, iniciou-se também a migração de turcos, sírios, libaneses e judeus que praticavam o comércio baseado na troca de mercadorias. O monopólio brasileiro de produção e os altos preços da borracha no mercado mundial enriqueceram durante algum tempo os donos de seringais e fizeram de Manaus e Belém “capitais de fausto e dissipação“. Nas primeiras décadas do século XX, com a concorrência da borracha asiática, a borracha amazônica perdeu mercado e a economia regional entrou em rápido declínio, deixando milhares de famílias de seringueiros na miséria.

A partir de 1929 os nipônicos começam a fixar-se em vários pontos da região amazônica. Tomé-Açu, no Pará, tornou-se o assentamento mais importante, ficando famosa pela produção de pimenta.

Durante a II Guerra Mundial, quando os japoneses cortaram o fornecimento de borracha para os Estados Unidos, milhares de brasileiros foram enviados para os seringais da Amazônia, em nome da luta contra o nazismo, dando origem à “Batalha da Borracha“. Os nordestinos recrutados para trabalhar nos seringais foram chamados de “soldados da borracha“, mas não receberam nem soldo nem medalhas. O saldo final foi terrível: Dos quase 60 mil soldados da borracha, cerca da metade desapareceu na selva amazônica. Só à guisa de comparação: dos 20 mil brasileiros combatentes na Itália morreram 454[5].

Frequentemente os seringueiros entraram em confronto com os índios que rejeitaram sua presença. A reação indígena provocou a vingança dos barões da borracha que mandaram massacrar os índios. Aldeias inteiras foram sacrificadas e os rios se tingiram da cor do sangue.

A partir da década de 70 a Amazônia tornou-se mais uma vez palco de grandes migrações. A construção de imensas estradas que cortam as selvas até então intocadas provocou uma corrida de milhares de famílias do nordeste à Amazônia. Sobrevoando o nordeste, o presidente General Medici teria exclamado, olhando para o norte, “Terra sem homens“ e acrescentado “para homens sem terra“, mirando das alturas os nordestinos duramente castigados pela seca. A reportagem da Folha de São Paulo em 10 de outubro de 1970, com o título “Medici implanta na selva marco inicial da Transamazônica“, é emblemática para aquela época. Diz a reportagem: “O general Medici presidiu ontem no município de Altamira, no Estado do Pará, a solenidade de implantação, em plena selva, do marco inicial da construção da grande rodovia Transamazônica, que cortará toda a Amazônia, no sentido Leste-Oeste, numa extensão de mais de 3.000 quilômetros e interligará esta região com o Nordeste. O presidente emocionado assistiu à derrubada de uma arvore de 50 metros de altura, no traçado da futura rodovia, e descerrou a placa comemorativa (…)  incrustada no tronco de uma grande castanheira com cerca de dois metros de diâmetro, na qual estava inscrito: “Nestas margens do Xingu, em plena selva amazônica, o Sr. Presidente da República dá inicio à construção da Transamazônica, numa arrancada histórica para a conquista deste gigantesco mundo verde”.

A destruição da selva milenar estava programada! Por incrível que pareça, derrubar e queimar a floresta tornou-se sinônimo de desenvolvimento e progresso.

E lá vão os nordestinos para o norte, fugindo da seca, atraídos por promessas governamentais. Mas poucos, apenas 15%, permanecem. O outros desanimaram e abandonaram e voltaram num pau-de-arara ao nordeste da caatinga e das secas periódicas, ou então refugiaram-se nas cidades que da noite para o dia incharam, duplicando e triplicando o número de seus habitantes.

A chamada segunda colonização, também incentivada pelo Governo, trouxe famílias do sudeste, do centro e do sul do Brasil a esta nova fronteira. Vieram em busca de terras para a agricultura ou criação de gado.

Muitos dos pioneiros, sujeitos às mais diversas doenças, à malária, ao esgotamento físico, sem assistência médica, sem estradas para o escoamento do produto, sem escola, desanimaram e venderam a preço ínfimo seu lote para fazendeiros, concentrando assim terras já tituladas nas mãos de uns poucos que compraram tantos lotes quantos apareciam à venda, degradando os pequenos lavradores à condição de peões, de agregados ou fazendo-os trabalhar “à meia” nos lotes dos quais até pouco tempo eram donos com título definitivo. Os lotes familiares de 100 hectares paulatinamente desapareceram, cedendo lugar para grandes fazendas de milhares de hectares. O dinheiro auferido pela venda do lote deu para sustentar a família só por pouco tempo. Repentinamente sem eira nem beira, tentaram a sorte nos garimpos. Se lá não acharam ouro, a malária encontraram com certeza. Em consequência de doenças, muitos morreram “de morte morrida“, outros tantos, pela violência que reina nos garimpos, “de morte matada“. Não existem estatísticas.

Décadas passaram, desde então. Os que permaneceram na Transamazônica e se tornaram detentores de maiores extensões de terra, em parte até conseguiram bons resultados. Pela primeira vez em significativas manchas de terra roxa, no atual município de Medicilândia, PA, vastos canaviais substituíram a floresta tropical. No entanto, o episódio do Pacal (1983) entrou na história como a grande rebelião dos canavieiros contra os maus tratos, a falta de pagamento da safra entregue e a quebra da Usina Abraham Lincoln. Os canaviais desapareceram. Os colonos, pequenos e médios fazendeiros, começaram a investir na pecuária ou então, o que trouxe bem melhores resultados, no cacau. Criou-se uma classe média rural mas sempre sujeita à oscilação dos preços no mercado internacional.

Nos últimos decênios surgiu uma nova categoria de conquistadores da Amazônia. São os famigerados grileiros que usurpam terras da União e através de manobras escusas mandam confeccionar títulos definitivos de propriedade artificialmente envelhecidos! Dispõem como nos velhos tempos do cangaço de forças para-militares para defender os seus interesses. Usam de suas influências político-financeiras para manter-se em imensas áreas. Querem apropriar-se também de terras pertencentes às famílias de agricultores, destinadas a projetos de desenvolvimento sustentável. Não respeitam nada e ninguém e avançam sem escrúpulos. As famílias dos pequenos agricultores sempre estiveram na mira desses pseudo-proprietários. Nas décadas passadas centenas de homens e mulheres perderam a vida de modo violento sem nenhuma investigação, sem nenhuma apuração do crime. São homens e mulheres enterrados como indigentes. Há cemitérios na Amazônia com inúmeras cruzes sem nomes, há cemitérios clandestinos sem cruzes! A mata cresce por cima das sepulturas e esconde o sangue derramado. A Justiça, se não é conivente, é ausente! Completam-se hoje sete anos desde a morte de Dema, Ademir Alfeu Federicci. Como dirigente de comunidade, sindicalista, vereador sempre defendeu os direitos do pequeno agricultor e lutou por dias melhores para o homem e a mulher do campo. Denunciou a exploração ilegal de madeira na área indígena Arara, próxima ao km 75 da Rodovia Transamazônica. No dia 23 de agosto de 2001 Dema, escreveu uma carta em apoio ao trabalho de investigação da Polícia Federal em relação aos grileiros da SUDAM. Dois dias depois, na madrugada do dia 25 de agosto de 2001, foi brutalmente executado na sua casa em Altamira. Caiu aos pés de Maria da Penha, sua mulher. Deu apenas para balbuciar ainda: ”Maria, tome conta de nossos filhos!”

A realidade é que a Reforma Agrária não avançou e a concentração da propriedade fundiária está aumentando. Os planos econômicos voltados para o campo brasileiro não são direcionados para atender as expectativas para um novo modelo agrícola. A produção familiar e cooperativada consegue apenas incentivos irrisórios, enquanto a produção das grandes empresas estrangeiras e nacionais ligadas ao capital financeiro receberam do Banco do Brasil só no ano passado R$ 7 bilhões.[6] O atual governo prioriza o modelo agroexportador e discrimina a agricultura camponesa, responsável pela produção de alimentos em nosso país. As terras improdutivas que deveriam ser usadas para a Reforma Agrária, estão sendo destinadas a empresas estrangeiras, para a produção de eucalipto, soja, gado e agrocombustíveis, em vez de alimentos.

Paradigmático para toda essa conjuntura nacional é o caso Raposa Serra do Sul. Aí, os dois projetos de país nitidamente se confrontam.

Nesta quarta-feira, dia 27 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) irá finalmente julgar o caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, área há milênios habitada pelos povos Macuxi, Wapichana, Taurepang, Ingaricó e Patamona. Todos sabemos o quanto custou, de mobilização, de trabalho, de luta, mesmo de vidas de lideranças indígenas, ao longo dos últimos 34 anos, para se conseguir a demarcação daquele território, em 2002, pelo governo Fernando Henrique, e a sua homologação em 2005, pelo governo Lula.

Todos sabemos também como os grandes interesses econômicos estão se movendo para anular essa homologação e como os seus aliados vêm atuando para que não só a homologação seja desfeita, mas para que esta área como qualquer outro território não seja reconhecido mais como terra indígena. Os aliados dos invasores atuam tanto no STF como no Congresso Nacional, em setores do Executivo e nos grandes meios de comunicação, mais uma vez espalhando mentiras e preconceitos com relação aos povos indígenas do Brasil.

De um lado estão os povos indígenas da Raposa Serra do Sol e seus aliados: os movimentos sociais, do campo e da cidade, como a Via Campesina e o Grito dos Excluídos, a Igreja Católica e suas pastorais sociais, a Diocese de Roraima, o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e as congregações que atuam na Amazônia junto aos povos indígenas, as entidades de defesa dos Direitos Humanos, todos agindo em defesa dos direitos indígenas conforme reconhecidos pela Constituição de 1988.

Do outro lado batalham contra os direitos indígenas inscritos na Constituição Federal os invasores, arrozeiros do agro-negócio, as grandes empresas de mineração, os políticos e os militares que agem a seu serviço. Todos eles atuam para anular os direitos constitucionais dos povos indígenas. Para conseguir o seu intento não agem só no Congresso, mas junto a sociedade nacional, buscando desconstituir os direitos indígenas assim como os direitos dos quilombolas, ribeirinhos e demais comunidades tradicionais, da Amazônia como do país todo.

Afirmei que Raposa Serra do Sol é um caso paradigmático. Realmente, dependendo de como os ministros do Supremo Tribunal Federal votarem, diferentes perspectivas estarão traçadas para os povos do campo no Brasil. Se votarem favoráveis aos povos indígenas, seus direitos, seus territórios, seu futuro como povos estarão mais uma vez assegurados. Se os ministros votarem contra os povos indígenas, escancaram-se as portas para o avanço dos grandes interesses econômicos sobre os demais territórios indígenas, como sobre os territórios de todas as comunidades tradicionais, incluindo também as áreas de preservação ambiental.

Não nos iludamos! O que está em jogo neste caso de Raposa Serra do Sol é o fato da Constituição Brasileira garantir a existência de terras fora do mercado capitalista. E é exatamente contra este fato que o agro-negócio e seus aliados se insurgem. Sua palavra de ordem é: “Nenhuma terra fora do mercado!”

Nosso lema afirma o contrário: “Toda a terra a favor da Vida e da Paz para os povos indígenas e para os povos do Campo!”

São dois projetos que estão em confronto:um a favor da terra para a Vida,o outro a favor da terra para o negócio.

Que a Vida seja vitoriosa!

[1] O acidente aconteceu em 16 de outubro de 1987, no km 23 da Rodovia Transamazônica Altasmira – Itaituba (BR 230). O Padre Salvatore Deiana, xaveriano, natural da Sardenha, Itália, 31 anos, sofreu morte instantânea.
[2] cfr. A Civilização Perdida da Amazônia, por Flávio Dieguez de Monte Alegre e Carlos Eduardo Lins da Silva, de Washington. http://super-abril.uol.com.br
[3] VIEIRA, Antônio, Sermões, tomo II, Sermão da Epifania, n. 5, Ed. Anchieta, São Paulo: 1943, (Facsimile da Edição de 1679).
[4] Uma enfermidade que os Bantus chamaram de „Kubanza“. Os portugueses transformaram esta palavra em „Banzo“. Trata-se de uma  imensa saudade que chega a proporções patológicos, levando a uma melancolia e resignação que causam a morte.
[5] cfr. História Viva, Edição nº 8 – junho de 2004
[6] cfr. MST Informa, n. 152, 11 de agosto de 2008.

Dom Erwin Kräutler

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