Artigos dos bispos

Dom João Justino de Medeiros Silva
Arcebispo de Goiânia (GO) 

 

 

A primeira missão confiada por Deus à humanidade foi a de cultivar e guardar a Criação (cf. Gn 2,15). As Escrituras falam do Senhor Deus que cria um jardim como casa para a humanidade, onde Deus e humanos passeariam juntos. No entanto, essa convivência harmônica foi rompida pelo pecado. Apesar disso, Deus não desistiu da humanidade. Ele a acompanha e a exorta à conversão. Faz isso com tal amor que enviou seu próprio Filho para a nossa redenção. E ressuscitou seu Filho dos mortos submetendo a Ele toda a Criação (cf. Ef 1,10).

Como Igreja peregrina, vivemos entre um jardim e outro: aquele de onde fomos expulsos pelo pecado, e aquele para onde caminhamos ao encontro do Senhor. Somos chamados à responsabilidade. Não podemos mais continuar respondendo à pergunta de Deus feita a Caim – “Onde está teu irmão?” (Gn 4,9), como se não tivéssemos nada a ver com o fato de que a terra está sendo devastada. 

Quando o anjo que subia do Oriente gritou aos anjos destruidores: “Não danifiquem a terra, o mar e as árvores” (Ap 7,3), ele gritava a todos os responsáveis pela destruição. Somos responsáveis pelo envenenamento dos Yanomami em Roraima quando compramos ouro minerado ilegalmente lá. Somos responsáveis quando elegemos e apoiamos representantes públicos que não respeitam os acordos internacionais de mitigação do aquecimento global.

A Igreja neste país não se furta da tarefa de defender os biomas brasileiros, especialmente a Amazônia. Assim, justificam-se as várias Campanhas da Fraternidade dedicadas aos temas ecológicos. Registre-se que a CNBB conseguiu que o Congresso Nacional aprovasse, em 2022, a lei n. 14.393 que dispõe sobre a Política Nacional de Educação Ambiental, para instituir a Campanha Junho Verde. 

Estudos mais recentes comprovam que a Amazônia não é uma floresta intocada pela humanidade; ao contrário, ela tem sido plantada e cultivada pelos povos indígenas (Levis, 2017), que aprenderam a conviver com seus ritmos, há pelo menos 12 mil anos. Esses povos cumpriram o mandato de Deus de guardar a Criação. Porém, a expropriação de suas terras em vistas do latifúndio, da monocultura, do agronegócio ou da mineração fomenta o desmatamento e as queimadas na Amazônia.

Há quem não compreenda a relação entre a conversão ecológica e a fé cristã. O Papa Francisco, na Laudato Si’, 217, citando Bento XVI, reafirma que a expansão dos desertos exteriores está intimamente ligada ao crescimento dos desertos interiores. A conversão ecológica é consequência do verdadeiro encontro com Jesus. Ele veio para que todos tivéssemos vida em abundância (cf. Jo 10,10). Por isso, essa conversão precisa se dar em vários níveis simultaneamente: desde o pessoal até o comunitário e o global. Porque não existe uma única resposta como solução, visto que não há duas crises separadas, mas, “uma única e complexa crise socioambiental” (LS, 139).

Estejamos atentos aos sinais dos tempos, aos apelos de Deus, da Igreja e da própria Criação. Tais sinais nos ajudam a tirar as escamas dos nossos olhos e a propor e acompanhar a elaboração de políticas públicas como a Campanha Junho Verde. É urgente que sejamos mais educados e formados na fé como guardiões da Criação, corresponsáveis pela vida dos irmãos e irmãs mais marginalizados, na tentativa de que a vida não continue sendo devastada pelos cataclismos que têm se tornado tão comuns nos últimos anos. Lembremo-nos de que tudo está interligado. E tudo depende da nossa conversão. 

Referências

LEVIS, C. et al. Persistent effects of pre-Columbian plant domestication on Amazonian forest composition. Science. v. 355, n. 6328, p. 925-31. 3 mar. 2017.

Dom Carmo João Rhoden
Bispo Emérito de Taubaté (SP)  

 

Solenidade de Corpus Christi 19/06/25 (Lc 9,11-17). 

Na celebração de Corpus Christi (Lc 9, 11-17) se fala da multiplicação dos pães e dos peixes. Jesus não é insensível diante dos sofrimentos e da fome de seus ouvintes. Intervém fazendo sua parte, mesmo deixando claro que não veio apenas para isso. Haveria de dar um outro pão já prometido: o da Eucaristia (seu corpo e sangue) este somente Ele podia oferecer. 

Na última ceia, Ele – Jesus, nos deixou dois sacramentos: o do perdão e o da Eucaristia, precedido de uma grande exigência: o mandamento do amor, ou seja, amar como ele amou. Portanto, não basta amar o próximo como a si mesmo, mas como o Cristo nos amou. Isto é preciso tornar-se bem claro para nós, como cristão. Jesus mandou amar, não pergunto se isso era fácil ou difícil. Mandou amar e sempre. 

Qual foi o contexto? O da última ceia, ou seja, o do amor-serviço pois, Jesus, neste contexto havia lavado os pés dos discípulos. Amar, portanto, é querer bem e servir. Ele-Jesus foi o maior servidor, oferecendo sua vida toda, para nossa salvação. Portanto, não pode haver celebração da Eucaristia, fora da realidade do amor-serviços.  

Isto é “meu corpo” isto é “meu sangue” disse Jesus. Outrora alguns discípulos, diante de tal afirmação, se insurgiram e começaram a ir embora, ou já a abandonar o Mestre. Mas Jesus, não retirou a sua palavra e ainda lhes perguntou: “quereis vós ir também?”. Pedro, então respondeu pelos apóstolos de ontem e de hoje: “só Tu tens palavras de vida eterna”.  E continuaram fiéis ao mestre. E nós?  A decisão mais uma vez: é minha, tua, nossa. 

 

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo de Belo Horizonte (MG)

 

 

Sempre forte e interpelante é o gesto poético-espiritual do Papa Francisco, na Praça São Pedro – a praça das multidões. Somente o Pontífice, trajando o branco da paz, em oração na praça vazia, naquele contexto de pandemia da COVID-19, que dizimou tantas vidas. Das palavras proféticas de Francisco ecoou a sabedoria do Evangelho inspirada na cena da tempestade que amedrontou os discípulos de Jesus: “Ninguém se salva sozinho. Todos estão na mesma barca”. Esta convicção é uma sabedoria que se contrapõe ao orgulho pretensioso e à ingratidão, fundamentos da torre de Babel que é monumento à soberba humana. A consciência de que se está em travessia, partilhando o trajeto de toda a humanidade, assevera a verdade de que todos estão “na mesma barca” e só a humilde atitude de se reconhecer como membro de um mesmo “corpo”, que é a “barca”, pode levar ao cultivo do sentimento de pertencimento, desdobrado na sábia coragem para contribuir no enfrentamento da “tempestade” que leva perigo a todos.  

Sabiamente, a Igreja Católica, na sua tradição e ensinamentos bimilenares, se reconhece como uma “barca”, a “barca de Cristo”, sob o leme comandado por Pedro, em uma travessia perigosa e exigente. A riqueza dessa metáfora, com força sapiencial e em tom de advertência, é aplicável à humanidade, à família de cada um, às instituições. Em todos os contextos, ninguém se salva sozinho. Essa incontestável verdade, para alicerçar a corresponsabilidade de uns pelos outros, pede atitudes fundamentadas em adequada envergadura moral, espiritual e humanística, essencial a uma “travessia” vitoriosa. Essa adequada envergadura não pode ser confundida com capacidade intelectual. Aliás, causa perplexidade constatar que há cidadãos racional e intelectualmente muito capacitados, mas com sérios comprometimentos humanos e emocionais.   Revelam essas lacunas na incompetência para superar mágoas, na inabilidade para exercer a gratidão pelo muito que receberam. Assim, julgam-se no direito de agir tiranicamente e tudo reduzir ao tamanho de suas emoções, ao seu modo de enxergar situações, pessoas.  

Os que se deixam contaminar pela ingratidão não são capazes de perceber: nas suas próprias conquistas também estão inscritos aqueles com os quais se partilha a mesma “barca de travessia”. A incapacidade para reconhecer a importância do semelhante na própria vida leva à perda de oportunidades, alimenta o ódio, desencadeando ataques. Um caminho que pode até levar a conquistas efêmeras, pois são alcançadas com prejuízos à própria “barca”. A falta de competência para enxergar que “ninguém se salva sozinho” explica a escassez de lideranças transformadoras. Ao invés de líderes, na sociedade surge cada vez mais pessoas enjauladas no cartório de seus interesses, situados no horizonte encurtado das convicções próprias. Consequentemente, convive-se com prejuízos de todo tipo, das impositivas depredações ao meio ambiente, inflamando reações perigosas da natureza, até o desrespeito a direitos, desconsiderando a dignidade humana, justificando os preconceitos, a propagação de mentiras, autoritarismos e manipulações.  

“Todos na mesma barca” deve ser interpelante princípio existencial para fecundar uma espiritualidade do respeito e da gratidão, da generosidade e da humildade, do compromisso com a vida de todos, para dissipar mágoas que multiplicam inimigos, ódios que justificam todo tipo de guerra. Esse princípio existencial e espiritual- “todos na mesma barca” – pode ter propriedades que alicerçam pertencimentos restauradores e promotores do bem comum. E, assim, qualificar a política, iluminar procedimentos profissionais e garantir legalidades a funcionamentos institucionais, articular melhor os poderes de uma república e amenizar as irritações que têm pautado relacionamentos nos lares, nas redes sociais e em tantos outros ambientes. A espiritualidade do pertencimento mútuo e fraterno é saída para a superação de naufrágios com perdas irreversíveis, alimentados pela guerra de palavras.  

Ao invés de guerrear por palavras, cultivar a espiritualidade do pertencimento mútuo e fraterno. Ajuda nesse exercício acolher o que diz Santo Antônio, hoje celebrado: “Cessem as palavras, falem as obras”. Palavras sem obras podem estar na contramão da “barca”, deixando-a à deriva. Vale adotar princípio evangélico que é regra de ouro: o outro é sempre mais importante porque todos estão na mesma “barca”. Desconsiderar esse princípio é singrar rumo à tempestade, perecer por cultivar sentimentos e atitudes que levam às profundezas. Ainda há tempo de se salvar. O caminho é se pautar pela consciência de que todos estão na mesma barca.