Artigos dos bispos

Dom João Santos Cardoso 
Arcebispo de Natal (RN)

 

Na Encíclica “Dilexit Nos”, o Papa Francisco destaca que o coração é o núcleo mais íntimo do ser humano, onde decisões e emoções se encontram e onde a verdadeira identidade se forma. Mais do que um órgão físico, o coração representa a interioridade que une corpo e alma, sendo a fonte da fé e da missão cristã. Com essa abordagem, Francisco transita do conceito do coração humano como centro de interioridade para o Coração de Cristo, centro de convergência e união, essencial para a transformação social e espiritual. Ao afirmar que “o Coração de Cristo, que simboliza o centro pessoal de onde brota o seu amor por nós, é o núcleo vivo do primeiro anúncio” (Dilexit Nos,  32), o Papa sublinha que a fé cristã vai além de dogmas; é uma resposta ao amor de Jesus, um ponto de síntese entre fé e vida, inspirando uma prática que transforma e impacta a sociedade.  

Levar o coração a sério, como propõe o Papa, tem consequências sociais profundas, pois a verdadeira mudança não surge apenas de normas ou esforços humanos, mas de uma “conversão do coração” que impulsiona ações concretas de amor, sacrifício e encontro (Dilexit Nos, 183). Essa conversão impõe a responsabilidade de reparar estruturas sociais que alienam e desumanizam. Essa reparação não é meramente espiritual ou simbólica; possui um significado social tangível e é impulsionada pelo próprio Cristo, pois a mudança de que o mundo precisa é possível somente quando motivada pelo Coração de Jesus, fonte de amor e sacrifício. A fé cristã, quando vivida plenamente, desdobra-se em ações concretas que visam restaurar a dignidade humana e construir um mundo mais justo e fraterno, movendo o cristão a agir contra as injustiças e promover a paz e o bem comum, tornando a devoção ao Coração de Jesus um motor de mudanças sociais significativas. 

A Encíclica enfatiza que a mudança social começa no coração e que somente comunidades que agem a partir dele podem unir e pacificar as diferenças. “Só a partir do coração é que as nossas comunidades serão capazes de unir e pacificar os diferentes intelectos e vontades, para que o Espírito nos possa guiar como uma rede de irmãos, porque a pacificação é também uma tarefa do coração. O Coração de Cristo é êxtase, é saída, é dom, é encontro” (Dilexit Nos, 28). 

O coração humano, como espaço onde se decide a verdade de cada um, tem implicações sociais quando levado a sério. A transformação das relações e da sociedade só é possível quando o coração se abre para o amor, a compaixão e a solidariedade. Segundo o Papa Francisco, reformar o coração é um convite à reforma da sociedade, pois os desequilíbrios sociais refletem um desequilíbrio no coração humano (Dilexit Nos, 29). A pacificação interna projeta-se na construção de uma sociedade justa, onde a dignidade humana é respeitada. 

A devoção ao Coração de Cristo é comunitária, social e missionária. “O Coração de Cristo, ao mesmo tempo que nos conduz ao Pai, envia-nos aos irmãos. Nos frutos de serviço, fraternidade e missão que o Coração de Cristo produz em nós, cumpre-se a vontade do Pai” (Dilexit Nos, 163). Assim, a verdadeira devoção ao Sagrado Coração de Jesus reflete-se em ações que transformam e renovam a sociedade e tem um profundo significado social.  

O Coração de Cristo é símbolo do amor divino que acolhe todos os seres humanos. Citando São Charles de Foucauld, o Papa mostra que o coração humano, inspirado pelo Coração de Cristo, é chamado a uma universalidade de amor que transcende barreiras culturais e sociais, refletindo o amor cristão como motor de transformação social e espiritual (Dilexit Nos, 179). A fé se expressa em caridade, solidariedade e justiça, unindo pessoas em uma rede de amor que promove a paz. 

Em resumo, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus é um compromisso que une contemplação e missão, ajudando na construção de uma sociedade justa, solidária, fraterna e comprometida com o bem comum. 

 

Dom Anuar Battisti
Arcebispo Emérito de Maringá (PR) 

 

 

Queridos irmãos e irmãs em Cristo, 

Hoje nos reunimos para celebrar o Dia Mundial dos Pobres, uma data que o Papa Francisco instituiu em 2017 para lembrar-nos da importância de cuidar dos menos afortunados em nossa sociedade. O Santo Padre, inspirado pela mensagem de Jesus Cristo e pelo exemplo de São Francisco de Assis, nos convida a olhar para aqueles que sofrem e a estender a mão em amor e compaixão. 

Em sua Encíclica “Fratelli Tutti”, o Papa Francisco nos lembra que “os pobres têm um lugar especial no coração de Deus e, consequentemente, no coração da Igreja.” Isso nos recorda que a atenção aos pobres não é uma opção, mas uma obrigação para todos os cristãos.  

Quando olhamos para a Bíblia, encontramos inúmeras passagens que falam da importância de cuidar dos menos afortunados. Em Mateus (25,40), Jesus nos ensina: “Todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.” Nossas ações em favor dos pobres são, portanto, uma expressão de nosso amor por Cristo. 

Além disso, o Livro dos Provérbios nos aconselha em Provérbios (14,21): “Feliz aquele que socorre o necessitado; o Senhor o livra no dia da desgraça.” É um lembrete de que quando estendemos nossas mãos para ajudar os necessitados, Deus está sempre conosco. 

No Dia Mundial dos Pobres, somos desafiados a sermos instrumentos de mudança em nosso mundo, a enfrentar a indiferença e a injustiça que afetam tantas vidas. O Papa Francisco nos encoraja a sermos construtores de pontes em vez de muros, a compartilhar o que temos e a criar uma sociedade mais justa e compassiva. 

A mensagem de 2024 do Papa Francisco para o Dia Mundial dos Pobresdestaca a importância da oração dos pobres, especialmente no contexto de um ano dedicado à oração, em preparação para o Jubileu Ordinário de 2025. Ele nos lembra que a oração do pobre é poderosa e chega diretamente ao coração de Deus, pois reflete uma relação genuína de humildade, confiança e necessidade. 

“A esperança cristã inclui também a certeza de que a nossa oração chega à presença de Deus; não uma oração qualquer, mas a oração do pobre.” 

O Papa Francisco usa o livro do Eclesiástico como referência e enfatiza que Deus se “impacienta” perante o sofrimento dos pobres e age para fazer justiça, pois todas as pessoas, em essência, são pobres e necessitam da presença de Deus em suas vidas: 

No seu caminho, descobre uma das realidades fundamentais da revelação, ou seja, o facto de os pobres terem um lugar privilegiado no coração de Deus, a tal ponto que, perante o seu sofrimento, Deus se “impacienta” enquanto não lhes faz justiça: “A oração do humilde penetrará as nuvens, e não se consolará, enquanto ela não chegar até Deus”.  

O Romano Pontífice ainda exorta todos os cristãos a serem instrumentos de libertação e promoção para os pobres, lembrando que a verdadeira caridade só é completa quando acompanhada pela oração, que fortalece e dá sentido às ações solidárias. Como o Papa Bento XVI disse, “sem a oração cotidiana, nosso fazer esvazia-se, perde a alma profunda”. 

Ao final da mensagem, o Papa nos recorda: “Em todas as circunstâncias,somos chamados a ser amigos dos pobres, seguindo os passos de Jesus, que foi o primeiro a solidarizar-se com os últimos”. 

À medida que celebramos este dia, peçamos a Deus a graça de sermos verdadeiros discípulos de Cristo, que sejamos agentes de transformação em nossa sociedade, estendendo as mãos aos pobres e oprimidos. Que a luz de Cristo nos guie em nosso compromisso de amor e solidariedade com nossos irmãos e irmãs menos afortunados. 

Que Deus abençoe a todos neste Dia Mundial dos Pobres. Amém. 

 

 

 

Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ) 

 

 

 

A nossa arquidiocese lançou em outubro, um livro sobre a pastoral do menor, organizado por uma das fundadoras, Maria Christina Noronha de Sá, que junto com o nosso antecessor D. Eugênio de Araujo Sales recorda dos inícios em uma noite de natal, após a missa “do galo”. É uma narrativa emocionante que depois vai ganhando corpo até se tornar o belo trabalho de hoje. 

A Pastoral do Menor, foi fundada em 1984 no Rio de Janeiro, celebra em 2024 seus 40 anos de existência, marcando uma trajetória de luta pelos direitos e pela dignidade das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Essa pastoral foi uma resposta às condições de pobreza, exclusão e violência enfrentadas por menores de idade, especialmente nas periferias e favelas do Rio de Janeiro. Sua missão, desde o início, foi defender os direitos humanos e proporcionar oportunidades de desenvolvimento para aqueles que vivem à margem da sociedade. 

A década de 1980 no Brasil foi marcada por profundas crises sociais e econômicas, agravadas pelo processo de transição para a democracia. O aumento da pobreza, a desigualdade social e a violência urbana atingiram de forma especialmente dura as crianças e adolescentes das camadas mais vulneráveis da população. Nas grandes cidades, como o Rio de Janeiro, o fenômeno das crianças em situação de rua começou a se tornar alarmante, e a sociedade passou a se deparar com o abandono, a exploração e a criminalização da juventude. 

Nesse contexto, a Pastoral do Menor nasceu como uma iniciativa da Igreja Católica, influenciada pelo compromisso cristão com os marginalizados. Seu objetivo era proporcionar uma resposta efetiva à exclusão social das crianças e adolescentes, oferecendo a eles proteção, dignidade e oportunidades de transformação social. A fundação da pastoral foi inspirada pelo desejo de atuar diretamente nas periferias, onde o Estado muitas vezes se mostrava ausente, deixando um vácuo de proteção social. 

A partir de sua criação, a Pastoral do Menor passou a desenvolver uma série de ações voltadas para a promoção dos direitos da criança e do adolescente, em consonância com a Doutrina Social da Igreja e os princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela ONU em 1989. Em um momento em que o Brasil começava a discutir a construção de uma nova ordem democrática e a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Pastoral do Menor foi uma das vozes que ajudaram a consolidar a ideia de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, e não meros objetos de tutela. 

Desde sua criação, a Pastoral do Menor no Rio de Janeiro desenvolveu uma ampla gama de programas e projetos voltados para a defesa e promoção dos direitos das crianças e adolescentes em situação de risco. Suas ações se dividem em várias frentes, que incluem educação, acolhimento, saúde, cultura e defesa de direitos.  

Um dos primeiros eixos de atuação da pastoral foi o acolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua, violência ou abandono. Através de parcerias com abrigos e casas de acolhimento (naquela época a legislação permitia), a pastoral buscou oferecer um ambiente seguro e afetivo, onde os menores pudessem se reestruturar emocional e psicologicamente. O acolhimento não é visto apenas como uma solução emergencial, mas como um ponto de partida para a reintegração familiar e social dos atendidos. Sabemos que hoje está tudo muito diferente, e o estado que chama para si essas reponsabilidades não consegue dar conta da missão. 

A Pastoral do Menor sempre teve uma forte preocupação com a educação como instrumento de libertação e oportunidades. Muitos dos projetos desenvolvidos pela pastoral visam proporcionar a crianças e adolescentes o acesso à educação de qualidade, com atividades de reforço escolar, educação de valores e inclusão em programas profissionalizantes. A formação integral das crianças e adolescentes é uma das bases de seu trabalho, buscando formar cidadãos conscientes de seus direitos e deveres. 

Para os adolescentes em situação de vulnerabilidade, a inserção no mercado de trabalho é vista como uma das formas mais importantes de romper o ciclo de pobreza e exclusão. A Pastoral do Menor desenvolveu programas de capacitação profissional que ajudam jovens a adquirirem habilidades técnicas e comportamentais necessárias para o mercado de trabalho. Cursos de informática, artesanato, culinária e outras áreas são oferecidos, além de parcerias com empresas que facilitam o acesso a estágios e ao primeiro emprego. 

Ao longo dos anos, a pastoral também assumiu um papel defesa: apoiando a implementação de políticas públicas que garantissem os direitos das crianças e adolescentes. A Pastoral do Menor participou ativamente da elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990, que foi um marco na legislação brasileira ao reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e ao estabelecer um sistema de proteção integral. 

A pastoral também atua de forma intensa na denúncia de violações de direitos e no acompanhamento de casos de abuso, violência e exploração infantil. Através de redes de proteção e parcerias com órgãos públicos, busca-se garantir que cada criança e adolescente tenha acesso à justiça e à reparação de seus direitos violados. 

A cultura e o esporte sempre foram vistos como ferramentas poderosas de inclusão e transformação social. A Pastoral do Menor promove diversas atividades culturais, como teatro, dança e música, que ajudam crianças e adolescentes a expressarem sua criatividade e a desenvolverem habilidades sociais. O esporte, por sua vez, tem sido uma importante via para a socialização e a promoção da saúde física e mental dos jovens atendidos. 

Ao longo de suas quatro décadas de atuação, a Pastoral do Menor no Rio de Janeiro enfrentou inúmeros desafios, muitos dos quais estão relacionados ao contexto de violência urbana, exclusão social e à ausência de políticas públicas eficazes para a proteção de crianças e adolescentes. A situação das favelas e periferias cariocas, marcada por altas taxas de criminalidade, tráfico de drogas e atuação de milícias, representa um ambiente de extremo risco para jovens em situação de vulnerabilidade. 

Ainda assim, a pastoral tem conseguido avanços importantes, especialmente no fortalecimento das redes de proteção infantil e na conscientização da sociedade sobre a importância de garantir os direitos das crianças e adolescentes. A atuação em parceria com outras entidades civis, ONGs, escolas e o sistema de justiça tem sido fundamental para a ampliação do alcance de suas ações. 

Um dos grandes marcos desse período foi a participação ativa na implementação do Sistema de Garantia de Direitos, que articula diferentes setores – como o Conselho Tutelar, Ministério Público, Defensoria Pública e organizações da sociedade civil – para a proteção integral das crianças e adolescentes. 

Em 2024, ao completar 40 anos, a Pastoral do Menor continua a ser um dos pilares na luta pela dignidade e pelos direitos das crianças e adolescentes no Rio de Janeiro. Sua atuação vai além das questões de assistência imediata, envolvendo-se diretamente em debates políticos e sociais sobre a infância no Brasil. Ao longo das últimas décadas, a pastoral ajudou a formar uma geração de jovens conscientes de seus direitos e capazes de lutar por um futuro melhor 

A celebração dos 40 anos da Pastoral do Menor é um momento não apenas para olhar para o passado, mas também para refletir sobre os desafios que ainda estão por vir. A desigualdade social e a violência continuam sendo problemas graves na cidade do Rio de Janeiro, e a missão de proteger as crianças e adolescentes é mais relevante do que nunca. A pastoral permanece comprometida com sua visão de uma sociedade mais justa e inclusiva, onde cada criança possa crescer com dignidade, segurança e oportunidades reais de desenvolvimento. 

Com uma trajetória marcada por lutas, conquistas e o compromisso inabalável com a defesa dos mais vulneráveis, a Pastoral do Menor se consolidou como uma força fundamental na promoção dos direitos das crianças e adolescentes no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro. Ao celebrar seus 40 anos de atuação, a pastoral renova seu compromisso com a construção de uma sociedade mais humana, onde a infância seja respeitada e valorizada em sua plenitude. Que Deus siga protegendo, abençoando e guardando nossas crianças, jovens e todos os que se empenham nesse importante trabalho em função do bem comum e da conservação da vida e dignidade desses nossos irmãos vulneráveis.