Dom Vital Corbellini
Bispo de Marabá (PA)
Introdução
Na atualidade da pandemia do covid 19 na qual o mundo, o nosso pais são atingidos, ceifando, infectando e recuperando vidas, a impressão seria que o contágio de um vírus se referiria à Idade Média ou nesses últimos séculos. No entanto na Igreja antiga, dos primeiros três séculos, as coisas ocorreram da mesma forma, ou semelhante.
Em 252, houve no Norte africano, em Cartago uma pandemia que ceifou milhares de vidas, espalhando-se em outros lugares do império romano. O vírus era uma varíola e/ou sarampo de modo que atingiu milhares de pessoas. São Cipriano teve compaixão seja com os cristãos, seja com os pagãos socorrendo a todos. Como Ele percebeu que muitos cristãos vacilaram, escreveu uma obra importante: De mortalitate (A mortalidade) fortalecendo a fé dos fiéis e repreendendo a fraqueza de outros. O autor colocou a passagem deste mundo para o outro, tendo presente o fator morte. Ele não comentou tanto a mortandade, mas a mortalidade, a atitude cristã diante da morte iminente, por causa da epidemia.
A obra: De mortalitate
A obra foi um animo para todos diante da pandemia, porque muitos morriam enquanto outros desanimavam diante da realidade. Tinha como fim, pela fé, dar força as pessoas para ter um bom encontro com o Senhor na hora da morte. O bispo de Cartago afirmou que o Senhor animou os discípulos diante dos sofrimentos futuros, fome, guerras, terremotos e pestes que surgiriam em toda parte. Seguindo a palavra do Senhor, as pessoas deveriam estar cientes que estaria próximo o Reino de Deus[1], pelo júbilo de sua vida, a salvação eterna. As realidades celestes sucedem às terrenas, as eternas, às passageiras[2]. Não se deve temer a morte, porque a pessoa vai ao encontro de Cristo. Não querer ir ao encontro de Cristo, é próprio de quem não crê, pois o contrário é reinar com ele[3].
O autor africano teve presente o justo Simeão que conheceu pelo Espírito, a vinda do Messias ao mundo de quem lhe fora profetizado. Assim quando viu o Messias, ele pediu ao Senhor que fosse despedido desta vida porque os seus olhos viram a salvação[4], reconhecendo no menino Jesus, que o porto seguro está nas moradas eternas, para assim chegar à imortalidade. A batalha humana é contra os vícios da carne e as seduções do século[5]. A pessoa deveria saber que o encontro com Cristo será de alegria, de amor, valores estes que nunca serão tirados[6], superando as angústias, as penas e as lágrimas desta vida. A fé na palavra de Deus que é eterna não deveria faltar para aqueles que crêem. Por isso não se poderia duvidar de Cristo, de Deus que ao partir deste mundo, são prometidas a imoralidade, a eternidade[7]. O Senhor mesmo sendo Mestre da nossa salvação disse aos seus discípulos que se o amassem ficariam alegres porque ele iria para o Pai[8]. São Paulo, seguindo a palavra do Senhor, afirmou que para ele viver é o Cristo e morrer é lucro[9]. O apóstolo desejou estar livre de tudo para a alegria eterna do próprio Cristo que o chamava.
O autor africano afirmou que os cristãos também eram atingidos por aquele contágio, não se diferenciando de outras pessoas, sobretudo pagãos. Estando neste mundo estamos ligados ao gênero humano pela igualdade da carne, no entanto um dia o corpo corruptível será revestido da incorruptibilidade, o mortal receberá a imortalidade[10].
O bispo de Cartago colocou que era comum a dor dos olhos, o ataque das febres, as enfermidades de todos os membros para os cristãos e para os pagãos[11]. Fez referências aos justos do AT que como Jó, Tobias tiveram paciência diante das adversidades, para assim não murmurar nas dificuldades, mas essas coisas eram aceitas com paciência de tudo que acontece neste século[12]. São Cipriano encorajava as pessoas ao temor de Deus, para preparar-se em tudo seja a perda da propriedade, seja o continuo e cruel tormento dos membros atingidos pela doença, seja a perda da esposa, dos filhos e dos demais entes queridos[13]. Tudo isso deu uma visão de como era a doença que atingiu a comunidade de Cartago, o local onde Cipriano viveu e atuou na epidemia. Desta forma ele insistia que a agressão dos males presentes não deve ser temida pela segurança dos bens futuros. Tudo deveria passar pelo combate, para assim provar a verdade[14].
São Cipriano tinha presentes os sofrimentos nos quais as pessoas passavam por causa da pandemia da varíola ou do sarampo. A vida dos cristãos era atingida, mas o fator que diferenciavam eles dos demais seres humanos, daqueles que não conheciam a Deus, era que estes murmuraram na adversidade, enquanto os cristãos na desventura, não se afastaram da virtude da fé, e se fortaleciam diante da dor[15]. Ele descreveu a situação das forças que eram dissolvidas, que a febre interior queimava a face ulcerada, que o estômago era dilacerado por vômitos repetidos, que os olhos ardiam com afluência de sangue, que a doença se espalhava pelas juntas, o ouvido era obstruído e eram cegos os olhos[16], de modo que não se deveria temer pela morte. O bispo de Cartago falou que a epidemia era uma peste para os judeus, gentios, mas para os servos de Deus era uma viagem da salvação[17]. Ele percebeu como as pessoas reagiam diante da dor, de modo que muitos se convertiam ao Senhor, à comunidade, portanto lutava sem temor da morte, quando viria o combate[18].
O bispo de Cartago também colocou que a epidemia era terrível, funesta, mortal, de modo que eram necessárias atitudes para enfrentá-la, onde se verificaria a justiça de cada pessoa, no caso se os sãos serviam aos enfermos, se os parentes se amam sinceramente, se os senhores tem piedade dos servos enfermos, se os médicos não abandonariam os doentes que imploram, se o avarento por meio da morte, abandona o ardor insaciável da sua cobiça, se os soberbos quebram o orgulho, se os ricos possam ajudar os pobres com alguma coisa[19]. Desta forma muitas pessoas ajudaram os infectados enquanto outros se omitiram, exortando a todos a caridade. São Cipriano afirmou que para os cristãos não era para temer a morte, pois a mortalidade é um exercício para a glória da fortaleza[20]. Ele ressaltava a importância da superação da tristeza pela morte das pessoas, pois aquelas pessoas avançaram na frente deles à semelhança dos que viajam ou navegam[21]. Se de fato os cristãos acreditam no Cristo, sendo Ele, a ressurreição e a vida, que todo aquele que vive e crê nele, não morrerá eternamente[22], as pessoas não morrerão, mas as pessoas reinarão para sempre com Ele[23]. O bispo afirmou que não se deveria lamentar a morte dos caros, nem hesitar o dia do chamado de todos, mas aceitar de bom agrado o convite do Senhor[24]. Cada pessoa humana é hóspede e peregrino neste mundo, amando o dia que a coloca na verdadeira pátria[25]. Quem não desejará abraçar os entes queridos?! Porque para o cristão a pátria é o paraíso. Qual será então a grande felicidade de possuir, sem temor da morte, a vida eterna e o reino celestial? Ai estarão presentes os apóstolos, os profetas, os mártires as virgens, os misericordiosos, aqueles que fizeram obras de justiça, de amor distribuindo aos pobres bens, alimentos e cumpriram os preceitos do Senhor. As pessoas são convidadas a caminhar para junto de Cristo, e o Senhor dará o premio para aqueles que fizerem a vontade de Deus[26].
Como conclusão é fundamental afirmar que a obra De Mortalitate de São Cipriano fez uma análise da epidemia ocorrida no norte da África na qual ceifou muitas vidas; é ao mesmo tempo uma obra de apoio à caridade para aqueles e aquelas que aliviaram os sofrimentos das pessoas e incentivava-as, sobretudo os cristãos para ir ao encontro do Cristo e do Reino de Deus, com obras boas de paz e de amor.
[1] Lc 21,31. A mortalidade. In: Cipriano de Cartago, Obras Completas 1. Paulus, São Paulo, 2016, pg. 216.
[2] Idem, 2. pg. 216.
[3] Ibidem, pg. 216.
[4] Lc 2,29-30. Idem, 3, pg. 217.
[5] Ibidem, pg. 217.
[6] Idem, 5, pg. 218.
[7] Idem, 6, pg. 219.
[8] Jo 14,28. Idem, 7, pg. 219.
[9] Fl 1,21. Idem, 7, pg. 219.
[10] Idem, 8, pg. 220.
[11] Idem, 8, pg. 220.
[12] Idem, 11, pg. 222.
[13] Idem, 12, pg. 223.
[14] Idem, 12, pg. 223.
[15] Idem, 13, pg. 224.
[16] Idem, 14, pg. 224.
[17] Idem, 15, pg. 225.
[18] Idem, 15, pg. 226.
[19] Idem, 16, pg. 226.
[20] Idem, 16, pg. 227.
[21] Idem, 20, pg. 230.
[22] Jo 11,25-26. Idem, 21, pg. 231.
[23] Idem, 21, pg. 231.
[24] Idem, 24, pg. 233.
[25] Idem, 26, pg. 234.
[26] Idem, 26, pg. 235.