Estamos na Quaresma. O ano litúrgico é o verdadeiro ano de todos os cristãos. É bom vivê-lo, tanto mais que o homem tenta formar seu próprio ciclo constantemente mutável
ao sabor de seus projetos. Devemos refletir sobre esse envolvimento de um ritmo que sustentou gerações de cristãos imprimindo uma força que se modelava sobre as diversas etapas da vida de Cristo.
Nada melhor começar o ano a partir dos “fins últimos”. A Igreja é aquela que se lembra do futuro. O horizonte, que estrutura e polariza a existência dos cristãos, é o Cristo mesmo. Crer nele, é reconhecer que ele é “o começo e o fim” (Apocalipse 21, 6).
A Igreja não cessa de lutar contra as tentativas da sociedade que utiliza o homem como puro material de construção. Os toureiros da secularização se excitam em vão contra a permanência de Deus na arena da vida, tentando derrubá-lo, neste tempo de grave crise da humanidade. Querem apagá-lo de sua consciência diante do egoísmo desenfreado; ambição do poder, do dinheiro, do prazer; desprezo do outro, negação do verdadeiro amor, sabendo que não existe outro salvador senão o próprio Senhor.
O cristão é aquele que começa sempre pelo fim para ler o grande livro da História iluminada por Cristo. Por isso o Evangelho lhe pede de “vigiar e rezar” afim de ser julgado “digno de permanecer de pé quando voltar o Filho do homem’” (Lucas 21, 36).
Neste segundo domingo da Quaresma, somos convidados a refletir sobre nossas situações de crise, quando as dificuldades se abatem sobre nós, e nos parecem insuperáveis. As leituras propostas apresentam duas situações de crise: a primeira envolve o patriarca Abraão; e a segunda os apóstolos por causa do Senhor Jesus.
A desconcertante aventura de Abraão começa 1850 anos antes de Cristo, portanto quase 4.000 anos passados. Pastor nômade na região de Ur, na Caldeia, sobre o Golfo Pérsico, onde confluem os dois grandes rios, o Tigre e o Eufrates, com tantas histórias.
Abraão tinha seus projetos humanos, como todos os homens deste mundo. Mas o Senhor tinha outros. Abraão recebeu do Senhor o convite para transferir-se para a terra prometida e a segurança de que ele, simples pastor nômade, tornar-se-ia cabeça de um povo inumerável, como as estrelas do céus, e como a areia da praia. Abraão, cheio de fé, aceitou e obedeceu. Partiu seguindo o caminho a ser indicado pelo próprio Senhor.
O tempo passava e sua mulher Sara resultava estéril e já anciã. Na velhice, veio o filho da promessa: Isaac. Na juventude do filho, veio uma nova ordem imprevista, contraditória, absurda: “Oferece teu filho em holocausto sobre o monte que te indicarei”. Abraão preparou tudo, e quando levantava o facão para imolá-lo, o Anjo o impediu e a voz do Senhor se fez ouvir: “Através a tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque obedeceste à minha voz!”
A bênção chega através da descendência de Abraão e tem um nome: o messias, Jesus, descendente de Abraão. Assim as expectativas humanas do patriarca não foram vazias, mas o Senhor as absorveu em um projeto mais amplo. Projetou-as sobre o plano do espírito, da fé, da salvação universal. Somos todos filhos de Abraão, pela fé.
Também os apóstolos tinham projetos humanos projetados em Jesus. Esperavam um messias que libertasse Israel da dominação romana e dela fizesse a nação mais poderosa do mundo. Mas Jesus não falava de grandeza terrena, antes dizia que ele acabaria nas mãos de seus inimigos e o matariam. Desilusão para os apóstolos! Jesus disse também que ressuscitaria. De um messias derrotado não sabiam o que fazer.
Jesus oferece aos apóstolos um sinal para levantar sua moral e compreender: o episódio da Transfiguração. Chamou Pedro, Tiago e João, e os levou consigo ao alto do monte Tabor. “Enquanto Jesus rezava, o seu rosto mudou de aspecto, e as suas vestes ficaram brancas e fulgurantes”. Por um momento apenas, Jesus deixava transparecer o divino que ele, Filho de Deus, carregava fechado dentro de si. E Pedro viu em profundidade aquela experiência excepcional e única. Os apóstolos acreditaram.
Na fé sabemos que existe um projeto de Deus que diz respeito a cada um de nós, positivo, que restitui também a nós a confiança e a vontade de viver e de fazer o bem.