O sentido de uma festa

Desde aquele longínquo outubro de 1717, em torno da tosca imagem de madeira, despedaçada, enegrecida pelo limo, que três pescadores, em um dia de aflição, retiram das águas do Rio Paraíba, cresce um especial culto por aquela que começam a chamar simplesmente a Aparecida. Bem antes, porém, de 1717, e do extraordinário aparecimento, já havia no coração do povo brasileiro uma indescritível devoção à Santa Mãe de Deus. Nós a herdamos de nossos ancestrais portugueses. Mas lhe demos, no correr dos anos, um jeito nosso de nos exprimir e inserir na vida.

Quem hoje estuda a “religiosidade ou piedade popular” brasileira, e a investiga sem preconceitos nem juízos formados, mas aberto aos valores que ela decerto encerra, descobre logo que a devoção a Nossa Senhora é componente especial desta piedade. Celebrando a festa da nossa Padroeira, fazemos um gesto profundamente brasileiro. Pois vamos ao encontro de um genuíno movimento da alma de nosso povo. E associamo-nos, malgrado a distância, à multidão de pessoas de todas as camadas sociais que enchem a cidadezinha do Vale da Paraíba de cores e ruídos, de cantos, mas, sobretudo, de oração e de fé. De uma fé simples: uma busca de Deus, sincera, arraigada, capaz de sacrifícios. Uma busca de Deus através de Nossa Senhora.

Mas que elementos podemos desentranhar do mais fundo desse gesto de celebração da Padroeira?

É um gesto de fé: esta é a primeira dimensão sem a qual a festa não teria o menor sentido. Um gesto de fé que se situa para além do quantificável, do que se vê e se apalpa, das coisas perceptíveis apenas materialmente. Algo que encontra sua compreensão no domínio do mistério de Deus. Algo que lança raízes em certezas profundas.

No caso deste patrocínio de Maria sobre uma Nação, quais seriam essas certezas? Certeza de que Maria se encontra para sempre junto de Deus e de que ela é capaz de interceder por nós com a mesma força com que, um dia, numa festa de casamento, em Caná da Galileia, ela obteve de seu Filho, Seu primeiro gesto misterioso e milagroso para que não esmorecesse a alegria dos convidados. Certeza de que esta Virgem Maria não é um ser legendário ou uma entidade abstrata, mas mulher nascida de nossa raça, e que levou para bem perto de Deus nossos valores humanos. Ela teve também uma pátria, pertenceu a um povo, aos quais amou e pelos quais sofreu. Ela experimentou esta realidade humana que é o patriotismo, conhece o seu sentido mais profundo e sabe o que pedir por nós e como proteger-nos junto de Deus. Ela diz a cada momento melhor que Ester a palavra que se lê precisamente no “Livro de Ester”: “Só te peço, ó rei, que salves o meu povo!” Certeza de que objeto do patrocínio de Maria, sob seu título de Aparecida, muito mais do que uma geografia – quilômetros quadrados de terra, florestas e rios – é um povo, a gente de uma Nação: seu destino humano, seus esforços e lutas, aspirações e esperanças, problemas, iniciativas, reclamos, realizações.

Certeza enfim de que este patrocínio não é algo de mágico que acontece sem nós. É, ao contrário, algo que supõe nosso livre consentimento cada dia renovado. Supõe que o peçamos, que nos façamos dignos dele, que o encaremos num compromisso pessoal e coletivo. E esta é precisamente a segunda dimensão do mistério do patrocínio de Maria sobre o Brasil: ele inclui de nossa parte um compromisso. Compromisso exigente em sua simplicidade, mas ao mesmo tempo gratificante.

Podemos descrevê-lo em seus dois aspectos fundamentais. No plano religioso, é o compromisso de assumirmos com verdadeiro espírito pastoral a imemorial devoção mariana herdada de nossos antepassados. Procurar compreendê-la no seu enraizamento mais profundo. Desvendar seus valores. Captar seu significado. Não rejeitá-la em nome de princípios que podem ser frequentemente abstratos e desencarnados. Mas (como por toda a parte se faz hoje, pela redescoberta da religiosidade popular) acolhê-la purificando-a e orientando-a.

No plano civil ou social: um compromisso para darmos as mãos uns aos outros, no esforço para que o País se converta naquilo mesmo que Maria quer que ele seja, uma vez que ela o adotou como seu. Que seja uma terra onde imperem a cordialidade, a capacidade de dialogar, de compor, mais do que de opor. Onde haja cada vez mais, entre pessoas e os grupos, a justiça, a igualdade, o respeito à dignidade. Onde reinem o espírito fraternal e a paz.

Dom Washington Cruz

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