O Papa Bento XVI, na sua terceira Carta Encíclica, Caridade na Verdade, ilumina as reflexões acerca da fraternidade, desenvolvimento econômico e sociedade civil com a admirável experiência do dom. Este é um contraponto imprescindível como reverso de uma visão meramente produtiva e utilitarista da existência. Não se pode, pois, repensar dinâmicas e esquemas em busca da superação das crises por novas configurações prescindindo da verdade central da fé cristã – tal o princípio de que o ser humano está feito para o dom.
A compreensão de si como dom é que exprime e realiza a dimensão da transcendência. Prescindir desta dimensão é cair no vazio produzido por um humanismo sem referências a valores que se ancoram para além do dinheiro e do mercado. Há quem pense que partir do bojo da genuinidade ética é caminhar na direção apenas de uma maestria sem vigor de profecia. Há, na verdade, a demanda de uma profecia que só nasce desta fonte ética, com propriedade para sustentar na profecia e na ação os caminhos novos da conduta humana. Não bastaria simplesmente analisar e apontar criticamente os percalços sem a criação de condições pessoais e humanitárias capazes de manter noutras direções os rumos das sociedades. Isto é, as direções da justiça e do respeito aos direitos. Quem e o que sustentará as práticas humanas que podem antecipar as feições dos novos céus e da nova terra? Oxalá as indispensáveis análises e as configurações de sistemas pudessem dar, por si mesmas, este sustento.
Não deixou e não deixa de existir sistemas que têm essa pretensão, perdendo de vista o limite de sua territorialidade e a força de que dispõem para realização de tarefa tão exigente. Por isso, sistemas se dissolveram – permanecem com suas teorias apenas os laivos teóricos sem as efetivações prometidas, cometendo barbáries de desrespeitos aos direitos humanos e mantendo a liberdade humana refém de ideologias que se esvaem pelas condições próprias dos seus limites. Abordar e configurar no horizonte das crises contemporâneas, na verdade uma crise de civilização, a experiência do dom é proposta profética de mudança de paradigma. A resistência para aceitação da indicação é grande.
Certamente, porque é mais fácil ou habitual o caminho das considerações próprias de uma visão meramente produtiva e utilitarista da humanidade. A humanidade não se sustenta apenas se o planeta, em si mesmo, se salvar. Há um sentido, como força imprescindível, que sustenta e fecunda o processo de busca dessa salvação ao planeta. Ou a conquista de uma nova ordem econômica, sentido que vem da consideração ética, criando lastros na cultura, da existência como dom.
Bento XVI, por isso mesmo, recorda que, erroneamente, o homem moderno se pensa como único autor de si mesmo, da sua vida e da sociedade. A análise da realidade é um insubstituível instrumental para indentificação de mecanismos que precisam ser desmontados, reconfigurados ou substituídos. Precisa, no entanto, de indicações, caminhos e experiências que, permanentemente, desmontem o fechamento egoísta no qual o coração humano facilmente se enclausura. É sempre oportuno ter presente que não se pode ignorar a natureza humana ferida, inclinada para o mal. Ignorar essa perspectiva na busca de superação da grande crise de civilização no cenário contemporâneo é dar lugar, reafirma o Papa no horizonte da doutrina católica, a graves erros no domínio da educação, da política, da ação social e dos costumes. Isto significa dizer, que na economia, como noutros campos, os efeitos perniciosos são consequências do pecado. Persiste ainda a pretensão humana, com força de convicção, da auto-suficiência, pretendendo eliminar o mal presente na história apenas com a própria ação.
No âmbito da economia, sublinha o Papa Bento XVI, está presente a convicção de que a exigência de autonomia não deve aceitar influências de caráter moral. Aí está uma explicação, pensando especificamente o âmbito da economia, porque ocorre usos abusivos e destrutivos dos instrumentos econômicos. Fica claro porque sistemas econômico, sociais e políticos, diz o Papa, espezinharam a liberdade da pessoa e dos corpos sociais, permanecendo incapazes de assegurar a justiça que prometiam. O serviço ao desenvolvimento humano integral não se esgotará jamais na acuidade de análises, por mais que adentrem os seus recônditos.
Há recursos que estão na compreensão, pois, da existência como dom. É importante ter presente, afirma Bento XVI, na Carta Encíclica, que o dom ultrapassa o mérito. A sua regra é a gratuidade. Na existência como dom, a verdade não é produzida, simplesmente, pela pessoa. A verdade é dada, encontrada, recebida. Tal como o amor, ele recorda, a verdade não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano. Há uma lógica própria do dom. Deve ser explicitada para levar à experiência.
