Causou espanto em certos setores eclesiais o artigo de Clodovis Boff, publicado na REB, em outubro de 2007. Ao lê-lo, não me surpreendi. Reconheço nas reflexões de Clodovis aquela vigilância epistemológica por ele preconizada em “A Teologia do Político e suas Mediações”, tema de sua tese de doutorado. Tenho, nesse mesmo instante em que escrevo, diante dos olhos seu livro “Teoria do Método Teológico” onde com clareza meridiana ele já expunha as bases epistemológicas da ciência teológica, fundamentado na melhor tradição da escolástica.
O objeto material da teologia, seu assunto é, em primeiro lugar Deus e, em segundo toda realidade criada, na sua relação com Deus. O objeto formal é Deus enquanto se revela. Ao se revelar, Deus se revela como princípio e fim de tudo. Tudo pode, pois, ser teologizado. Donde ser possível e necessário pensar teologicamente a sexualidade, a história, o trabalho, a libertação. São “enfoques novos”, para ficar com a expressão de Clodovis. “Esses novos enfoques se articulam com o enfoque teológico básico como ‘enfoques segundos’ em relação ao ‘enfoque primeiro’. Portanto eles encontram seu fundamento último e sua justificação radical somente quando se acrescentam á perspectiva própria da teologia – a luz da fé – e operam no vigor da mesma. Essa perspectiva constitui o enfoque originário, perene e insubstituível de todo e qualquer discurso que se quer teológico”(cf TPT pags. 55 e 56). Esta distinção já estava elaborada na “Teologia do Político como Teologia I e teologia II. A ambigüidade – “funesta” na expressão do autor – da TdL , está no fato de não manter a revelação de Deus no comando da reflexão. Assim se exprime Clodovis: “Por outro lado, que seja a fé no Deus revelado o princípio primeiro da teologia, isso é aceito sem maiores problemas na TdL. Mas esse princípio não opera aí para valer. Representa apenas um dado pressuposto, que ficou para trás, e não um princípio operante, que continua sempre ativo. É um artigo de fé confessado, mas não uma perspectiva teórica que dá a cor dominante a todo o discurso libertador. Que dê alguma cor a esse discurso, é inevitável, já que se trata de teologia, mas é uma cor desbotada, para não dizer simples matiz”. A consequência é a inversão e a instrumentalização da revelação para fins alheios à sua natureza. Eis a inversão: “não é mais Deus, mas o pobre, o primeiro princípio operativo da teologia. Mas, uma inversão dessas é um erro de prioridade; por outras, é um erro de princípio e, por isso, de perspectiva. E isso é grave, para não dizer fatal”. Eis a instrumentalização: “Ora, quando o pobre adquire o estatuto de ‘primum’ epistemológico, o que acontece com a fé e sua doutrina no nível da teologia e também da pastoral? Acontece a instrumentalização da fé em função do pobre. Cai-se no utilitarismo ou funcionalismo em relação à Palavra de Deus e à teologia em geral”. O resultado: “o resultado inevitável é a redução da fé e, em especial, sua politização. Fala‐se aqui também, criticamente, da transformação da fé em ideologia. Isso procede toda a vez que se dá à ideologia o sentido preciso que lhe dá o Magistério: o de uma fé que decai de seu nível transcendente para a imanência da política”.
“Mas não vê que está aí confundindo dois sentidos de “ponto de partida”: como mero começo (material, temático, cronológico ou ainda prático) e como princípio (formal, hermenêutico, epistemológico ou ainda teórico). Ora, “pobre” pode ser “ponto de partida” como “começo” (começo de conversa), mas não como “princípio” (critério determinante)”. Acrescento eu que o problema se agrava mais ainda quando de fato o pobre não é o pobre concreto, sinal vivo de Cristo, mas o pobre ideologizado, transformado em “classe social”, visto como a antítese histórica necessária para operar a redenção da humanidade. Pela porta “pobre” entra então na teologia e na prática pastoral um elemento novo que passa a ser de fato o princípio hermenêutico, a chave de interpretação do próprio conteúdo da fé. Esta inversão vem muito bem descrita no artigo de Clodovis quando ele mostra que o antropocentrismo da modernidade exerceu forte influência também no pensamento teológico. Assim: “ Foi assim que a teologia se “modernizou”, antropologizando-se: o homem como o sol, e Deus, seu satélite. Omnia ad maiorem hominis gloriam, etiam Deus”. E continua: “nesse contexto é compreensível que também a TdL tenha embocado a rota antropocentrizante do espírito moderno. Só que para ela o centro não era mais simplesmente o homem, mas o homem pobre. O seu era o antropocentrismo “da libertação”. Contudo, nela, também o novo centro temático e perspético ameaçava suplantar o antigo e perene Centro da fé, de maneira que, aqui, o lema da modernidade ressoaria assim: omnia ad maiorem pauperis gloriam, etiam Deus”. Inevitável não ver nesse processo o desdobramento da afirmativa de Feuerbach de que “o mistério da teologia é a antropologia”, enriquecida com a proposta de Marx de que o caminho da redenção do ser humano – sua desalienação –está na luta e organização dos pobres. “A substância da fé acaba em mero discurso, portanto, em qualquer coisa de irrelevante. Pois, como se ouve nos meios “liberacionistas”, o que importa não é tanto a Igreja ou Cristo, quanto o Reino” . Lembro-me da reflexão de fundo de uma assembléia da PJ em que participei. A sociedade foi dividida em dois times. Em um dos lados do quadro negro estava o Time do Projeto Neoliberal e do outro o Time do reino de Deus.Estimulados pelos que orientavam a dinâmica, depois de uma análise de conjuntura, onde teologia, economia e sociologia se misturavam, foram os jovens que formaram os times. O time do Reino era formado por grupos, movimentos sociais, pessoas e partidos da esquerda. Do outro lado os mais representativos da posição contrária. Em dado momento não sabiam o que fazer com a Hierarquia da Igreja. As CEBs salvaram da dificuldade os orientadores da dinâmica. Ainda bem que algo na Igreja estava do lado do reino. Fiz, na ocasião, uma interferência, mostrando que essa equação “Reino versus Modelo Neoliberal” era teologicamente insustentável, por se tratar de categorias de níveis distintos. O correto seria colocar, no lugar de “Reino”, “Modelo Alternativo”.
Este é apenas um exemplo de como o discurso religioso pode se tornar apenas a tinta com a qual se escreve um discurso meramente político. A categoria “reino” é preferida à pessoa de Jesus Cristo Ressuscitado, uma vez que este pede amizade, adoração, conversão pessoal profunda e permanente. O reino pode ser reduzido a valores – justiça, solidariedade – e pode facilmente ser assimilado como ideologia política de transformação social. Isto aconteceu há alguns anos, mas aqui e acolá sempre de novo encontramos a expressão reino com significado duvidoso do ponto de vista teológico. Assim: “a causa de Jesus foi o reino, nós devemos continuar sua luta”. E imediatamente se passa a falar de movimentos sociais e quejandos.
Aí está, prezado leitor, um pouco das reflexões de Clodovis Boff. Seu artigo nos coloca em estado de alerta. Lembro-me que alguns teólogos, a propósito do documento de Puebla, falavam de duas teologias do documento: uma explícita – a João Paulo II- e a outra implícita, presente nas práticas pastorais da igreja reunida em Puebla. Esta seria a autêntica e a que melhor responderia aos desafios da época. Há já aqueles que pretendem fazer uma leitura “liberacionista”do documento de Aparecida para não reverem seus pontos de vistas herdados dos equívocos apontados por Clodovis Boff. O artigo de Clodovis convoca-nos a todos nós, sobretudo pastores e assessores de juventude, a uma séria revisão de nossos processos formativos, à luz do documento de Aparecida. Termino citando a palavra final de Clodovis Boff:
“Que a TdL possa continuar, mesmo incorporada organicamente na teologia sine addito, arvorando a etiqueta que a designa, isso pertence ao legítimo pluralismo teológico. Poderá assim lembrar a toda teologia seu dever de integrar sempre mais a dimensão sócio-libertadora da fé, protagonizada pelos pobres. É assim também, aliás, que subsistem, na harmonia do corpo eclesial, os grupos mais diversos, cada um privilegiando um carisma particular.
Mas é também possível que parte da TdL resista e insista em se entender como uma teologia integral à parte, construída a partir de princípios próprios. Mas então será difícil evitar certa polarização em relação à teologia em geral, quando nada porque a inevitável desambigüização dessa corrente porá em evidência o caráter aporético de seu método. Pois o pobre não poderá agüentar por muito tempo nas costas o edifício de uma teologia que o escolheu por base: cederá, antes de ser esmagado por ela, como a história não se cansa de mostrar”.
O trecho que segue merece atenção especial:
“O certo é que a evolução teórica da TdL não se dará de modo automático, graças à simples “força das coisas”. Pois nenhuma situação histórica resolve por si só problemas teóricos. Problemas teóricos se resolvem teoricamente. Quando se tenta resolve-los por mera remoção (mediante repressão ou então por simples descaso), reaparecem como erva daninha, cuja raiz foi deixada”.
Daí também a razão e a intenção destas linhas. Buscando rigorizar a discussão sobre o estatuto epistemológico da TdL e procurando assim esclarecer e resolver sua problemática de fundo, talvez possam contribuir a dissolver a polarização gerada por ela e favorecer, deste modo, a catolicidade sinfônica da teologia.
Isso só poderá redundar na felicidade dos pobres, na glória de Deus e na confusão do diabo”(cf.LG.17).
