DOM ALBERTO TAVEIRA CORRÊA
Arcebispo de Belém do Pará
Durante a Quaresma a Igreja nos faz acompanhar o processo instaurado contra Jesus pelas forças religiosas, políticas e judiciais que se ajuntaram para condená-lo à morte ignominiosa, transformada, pelo plano de salvação estabelecido no seio da Trindade, em fonte de salvação para toda a humanidade. E nos dias que correm, a sociedade pode assistir, inclusive pelos meios de comunicação, uma série de julgamentos, com as respectivas condenações, absolvições ou arquivamentos. De repente, multiplicam-se os advogados, defensores públicos, promotores do ministério público. Todos se consideram formados e adequados para emitirem seu juízo. E o grande tribunal das redes sociais escancarou suas portas, para que pessoas e instituições sejam assim levadas a julgamento, com prejuízos incalculáveis para sua fama e dignidade. O princípio que afirma ser inocente a pessoa acusada até que se prove sua culpa, chamado presunção de inocência, foi jogado no ralo!
É oportuno dar a palavra ao Juiz da história, nosso Deus e Senhor, para ver e ouvir o que pensa, a fim de que maior lucidez venha à tona, em tempo de tantas controvérsias. E como quem conhece profundamente o coração humano e os rumos da história humana, sabemos que ele pode aproveitar a contribuição de representantes de poderes nada religiosos, para misteriosamente conduzir os acontecimentos. O povo de Deus, ao final da terrível experiência do exílio da Babilônia (Cf. 2 Cr 36,4-16.19-23), viu um rei vindo do paganismo ser transformado em instrumento para o retorno à terra prometida: “No primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia, se cumpriu a palavra do Senhor, proferida pela boca de Jeremias. O Senhor moveu o espírito de Ciro, rei da Pérsia, e este mandou proclamar em todo o império, também por escrito, este decreto: ‘Assim fala Ciro, rei da Pérsia: O Senhor, Deus do céu, me entregou todos os reinos da terra. Ele me encarregou de lhe construir um templo em Jerusalém de Judá. Quem de vós faz parte da totalidade de seu povo? Que o Senhor, seu Deus, esteja com ele! E que ele suba para lá!'” Deus é senhor e juiz da história, recolhendo o que existe de bom, a sabedoria e as decisões mais justas, venham de onde vierem.
Deus é senhor e juiz da história, no envio de seu Filho ao mundo (Jo 3, 16-17): “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele”. Deus nos criou para sermos filhos e irmãos, felizes junto dele aqui nesta terra e na eternidade. Jesus Cristo veio e sua presença salvadora quer entrar em todos os recantos da história humana, não como um fiscal pronto a identificar as eventuais infrações à lei para castigar e multar, mas pronto a indicar as estradas da vida verdadeira, a vida eterna.
O “julgamento” feito por Deus é resultado do contato com a luz do mundo, aquele que é a própria luz. Nele é possível ver as manchas existentes em nós, para nos deixarmos purificar. Basta anunciar o bem, pensar o bem, proclamar o bem e praticá-lo, para que se perceba o mal existente. Trata-se de provocar uma santa vergonha diante da limpidez cristalina da fé vivida e da caridade praticada. Não dá para sujar as mãos e o coração quando o ambiente e o ar que se respira são puros!
Deus é senhor e juiz da história com a sua misericórdia (Cf. Ef 2,4-10). Ele nos deu a vida com Cristo. Ele é apaixonado pelas nossas misérias, tem o coração voltado e dado a estas misérias do coração humano, à condição da sinceridade e da abertura diante dele. Bom exemplo é o Sacramento da Penitência, em que o ministério da Igreja abre as portas do perdão e da paz para todos. Trata-se de um Tribunal, sim, mas a sentença é sempre o perdão. Reconhecimento sincero das próprias faltas, confissão clara e completa, propósito de vida nova, declaração do arrependimento verdadeiro, sentença libertadora. Que bom ouvir do confessor: “Deus, Pai de misericórdia, que, pela morte e ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo e enviou o Espírito Santo para a remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz. E Eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. “A fórmula de absolvição, em uso na Igreja latina, exprime os elementos essenciais deste sacramento: o Pai das misericórdias é a fonte de todo o perdão. “Ele realiza a reconciliação dos pecadores pela Páscoa do seu Filho e pelo dom do seu Espírito, através da oração e ministério da Igreja” (Catecismo da Igreja Católica, 1449).
Provavelmente o tema da justiça de Deus provoca em muitas pessoas a pergunta a respeito dos tribunais da Igreja. A história já mostrou como homens e mulheres de Igreja e da Igreja correram riscos e muitas vezes efetivamente erraram no julgamento das pessoas. Salta à vista o fato de a Igreja de Cristo, malgrado todas as nossas falhas, tem sido preservada por ele mesmo, pois foi purificada pelo seu sangue. Entretanto, também a Igreja em nossos dias tem seus tribunais eclesiásticos, para administrar a justiça. Sendo que o bem supremo é o bem das almas, como se conclui o Código de Direito Canônico, é de se notar que os referidos tribunais se destinam justamente a aplicar a justiça na caridade e com a caridade. Basta o exemplo das causas matrimoniais, julgadas pelos tribunais eclesiásticos, onde o trato é pessoal, sem confrontos públicos e degradantes, mas conduzidos pelo contínuo exercício da escuta, pautado pelo binômio “misericórdia e verdade”.
Vale ainda notar que uma prática da justiça evangélica propõe a correção fraterna: “Se teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, tu e ele a sós! Se ele te ouvir, terás ganho o teu irmão. Se ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas pessoas, de modo que toda questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas. Se ele não vos der ouvido, dize-o à igreja. Se nem mesmo à igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um publicano” (Mt 18,15-17). Deus, em sua infinita misericórdia, aceita percorrer tais passos junto conosco, dando-nos a possibilidade de reconstruir o relacionamento com o próximo, no qual a mesma justiça verdadeira e misericordiosa de Deus quer se fazer presente. No final, o que parece mais óbvio, o trato pessoal! Mas é aí que tudo começa! Podem parecer até ingênuas estas estradas do evangelho, mas, sem elas, ninguém vai para frente e nem alcança os cumes da verdadeira realização, cujo nome verdadeiro é salvação. A escolha é nossa!
