Dom Vital Corbellini
Bispo de Marabá (PA)
Ultimamente foi publicada uma Carta Apostólica tendo como título: Placuit Deo, do dia 22 de Fevereiro, sendo aprovada pelo Papa Francisco no dia 16 de Fevereiro, e assinada pelo Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, o Cardeal Luis F. Ladaria, SJ, Arcebispo de Thibica. Sendo uma resposta dentro do ensinamento do Papa Francisco, é importante esta carta porque fala sobre alguns aspectos da salvação cristã, levando em conta as dificuldades de compreensão da mesma (a salvação) em Cristo, devido às recentes transformações culturais. Tem como inspiração à palavra paulina que fala da aprovação de Deus que na sua bondade e sabedoria quis revelar-se a si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade, por meio de Cristo, Verbo encarnado, e assim termos acesso ao Pai no Espírito Santo, em vista da participação humana à natureza divina, a salvação eterna (cfr. Ef 1,9; 2,18; 2 Pr 1,4).
O que a carta tem presentes? São correntes antigas e modernas que não levam em consideração o dom de Deus da salvação. Coloca duas questões: o individualismo, que faz a pessoa autônoma, centrada em si mesma e a salvação como mera cura interior, não havendo relações com os outros. Essas duas concepções levantam enormes dificuldades e questionam a proclamação de Jesus como único Salvador de todo o homem e da humanidade inteira. O Arcebispo colhe duas tendências atuais, bem presentes o magistério do Papa Francisco, sendo este bastante determinativo no combate, porque representam dois desvios na doutrina cristã. Essas duas heresias estavam presentes também na Igreja primitiva, dos primeiros séculos nas quais os padres da Igreja combateram-nas, seja o pelagianismo seja o gnosticismo. Hoje essas mesmas tendências possuem novas formas de pensamento e de atuação. Está se difundindo uma nova concepção pelagiana, assim chamado neo-pelagianismo, em que o ser humano pretende salvar-se a si mesmo, sem alguma relação com Deus e com os outros. Pelágio dizia que o homem é bom por si mesmo e por isso não necessitava da graça de Cristo para a sua salvação. Pelágio era um monge ascético, nascido pelos anos 350 provavelmente da Bretanha, tendo morrido em 423. Esteve em Roma, no Norte da África e na Palestina. Santo Agostinho combateu as suas ideias falando que o ser humano não pode salvar-se por si mesmo, porque necessita da graça de Deus, porque pecou no inicio e por isso é necessária a graça de Cristo para ser salvo. Ainda que pratique obras boas, a caridade, por exemplo, mas é sempre a graça de Cristo que atua para que o ser humano pratique a paz, o amor entre as pessoas. A graça de Deus não substitui a liberdade humana, do contrário, ela a impulsiona para que faça o bem, pratique obras boas. A vida eterna não é senão a coroação da graça de Cristo Jesus ao ser humano pelo bem realizado. Por isso a influência das idéias pelagianas está se infiltrando na realidade atual o que fez a Congregação da Doutrina da Fé elaborar a Carta Apostólica, sendo que o Papa Francisco está combatendo tais idéias, para afirmar que a salvação é graça de Deus para o ser humano e este responde com fé amor ao apelo do Senhor, da qual vive e necessita da graça divina, não ficando independente da mesma. Se for verdade que um neo-pelagianismo está presente no mundo atual na qual a salvação plena está nas mãos do ser humano, ou em suas estruturas, incapazes de acolher a novidade do Espírito Santo é preciso afirmar diz a carta, que o ser humano necessita da graça do Senhor e que por si só não se salvará.
Existe também outra corrente de pensamentos e de ações chamada de neo-gnosticismo apresentando a salvação como meramente interior, fechada no subjetivismo da pessoa. Os gnósticos dos primeiros séculos como Basílides, Menandro, Saturnino, afirmavam que a salvação era só dada no nível espiritual, sem alguma ligação com os outros, a história humana. Eles afirmavam que Jesus não possuía a natureza humana, de modo que ficou alheio aos sofrimentos das pessoas, sendo mais divino que humano. A salvação era subjetiva, dada só aos gnósticos, porque eram os únicos a terem a revelação dada por Deus em Jesus Cristo, totalmente desligados da comunidade apostólica, da Igreja e do povo de Deus. Eles se consideravam salvos, eleitos de modo que a grande maioria do povo de Deus não tinha a salvação. Eles se infiltravam nas comunidades cristãs para apanhar adeptos, adeptas. Santo Ireneu de Lião, Tertuliano, Orígenes os enfrentaram colocando a importância da natureza humana em Cristo Jesus, a salvação como dom de Deus dada para todas as pessoas a partir de Jesus Cristo, não apenas para alguns, ressaltando também a vivencia na comunidade cristã, fazendo obras de caridade, na qual a salvação vai se constituindo, e não na gnose, no conhecimento humano e divino para os que eram eleitos ou eleitas. O neo-gnosticismo de que fala a Carta Apostólica, é a pretensão da elevação do intelecto humano para além da carne de Cristo, portanto negando-se de novo a realidade humana do Senhor, na tentativa de libertar a pessoa do seu corpo e do mundo material. A salvação seria dada como própria da pessoa por ter conhecimentos divinos, sem a vivência da comunidade. A carta apostólica tem presente a diferença dessas heresias na Igreja antiga e a época atual, secularizado, havendo também as semelhanças que fazem dizer neo-pelagianismo e neo-gnosticismo.
É claro que essas correntes descaracterizam a confissão de fé em Cristo, como único Salvador de toda humanidade. Como será possível a salvação da pessoa em Cristo Jesus, se ela vive independente da graça, buscando a sua própria realização? Como é possível a salvação em Cristo se a pessoa nega a sua encarnação, o mistério pascal na tentativa de libertar-se do seu próprio corpo e da matéria para viver num mundo da divindade? É contra essas tendências que a carta apostólica foi elaborada tendo presente que a salvação é a união com Cristo, a sua encarnação, paixão, morte e ressurreição, em unidade com o Pai e o Espírito Santo e na relação com as pessoas humanas.
A carta tem presente a salvação, na qual o ser humano a deseja, não a obtendo com o ter, o bem-estar material, a ciência ou a técnica, a auto-realização também pelo fato que as coisas deste mundo não dão a comunhão que é própria o estar com Deus. A vocação de cada ser humano é a comunhão com Deus, a divina. O ser humano ao pecar, abandonou a fonte do amor, mas pela unidade e amor em Cristo Jesus ele poderá obter a salvação, mas pela graça de Cristo que age nele. Por isso é que Jesus é o Salvador, a Salvação que será dada como dom ao ser humano em Cristo Jesus. Dessa forma é preciso a acolhida de sua Pessoa, como Salvador nosso e da humanidade e a salvação tem um nome e um rosto: Jesus Cristo, Filho de Deus Salvador. É Ele quem dá sentido a todas as coisas; é a sua Pessoa que devemos nos encontrar que dá a vida e sentido a tudo o que realizamos na pastoral, no movimento, no serviço, que possibilita fé, esperança e caridade. Jesus é o revelador do Pai, o Redentor, o Libertador, aquele que diviniza o ser humano na graça do Espírito Santo em unidade com o Pai. Dessa forma não se pode cair nos dois reducionismos, aquele individualista da tendência pelagiana ou do neo-gnóstico, que promete uma libertação interior. É preciso considerar que Jesus é o caminho que nos leva ao Pai e que é o Salvador porque assumiu a nossa humanidade, vivendo a plenitude humana, sendo homem e sendo Deus, na única Pessoa em comunhão com o Pai e com os seres humanos. A salvação é a incorporação nossa com Cristo ao receber do Pai o seu Espírito Santo, a vida plena dada para sempre. Assim, Jesus Cristo é o principio de toda a graça da qual necessitamos para a salvação sendo ao mesmo tempo o Salvador e a Salvação.
A carta coloca também a importância da comunidade, como lugar onde recebemos a salvação trazida por Jesus Cristo, que é a Igreja. Assim superar-se-ão as tendências reducionistas tanto do neo-pelagianismo como também do neo-gnosticismo, porque no fundo elas querem individualizar a salvação trazida pelo Senhor Jesus Cristo. A salvação que Deus nos oferece através de seu Filho não é dada apenas pelas forças próprias, da boa vontade e ação da pessoa, como aludiria o neo-pelagianismo, mas na relação com Jesus Cristo, Verbo de Deus encarnado e na comunhão com a Igreja. Da mesma forma a graça do Senhor Jesus não é como afirma a visão neo-gnóstica como uma salvação interior, mas é dada na Igreja que Ele constituiu, nas relações humanas, sobretudo com as pessoas mais sofredoras e pobres. A Igreja como sacramento universal de salvação leva à comunhão com as pessoas em vista da participação da comunhão com a Trindade. Aqui entra também a visão sacramental que liga a pessoa à Igreja e à salvação dada pelo Senhor, porque as duas visões, a individualista e a interior da salvação não levam em conta a economia sacramental através da qual Deus quer salvar a pessoa humana. Entram os sacramentos do batismo, da crisma e da eucaristia e os outros sacramentos como formas de unidade com o Senhor e com a sua Igreja. É claro que seremos julgados pelo amor dado, sobretudo aos sofredores e pobres (cfr. Mt 25,11-46).
Concluindo, afirmamos a importância da Carta Apostólica sobre a salvação como dom de Deus dado ao ser humano, sendo também uma critica ao neo-pelagianismo que reduz a salvação à realidade humana por si só, sem precisar da graça do Senhor e ao neo-gnosticismo que tenta libertar a pessoa humana desta realidade sem algum compromisso do bem, da paz e do amor. É preciso superar essas visões, concepções que podem estar em nossos corações, famílias e comunidades, e perceber que a salvação é dom de Deus e o Salvador é o Senhor Jesus Cristo que nos convoca a fazer o bem, à prática de seu mandamento no amor a Deus, ao próximo como a si mesmo tendo uma vida de engajamento comunitário.
