“Bem aventurados os puros de coração porque verão a Deus” (Mt 5, 8)

Dom Dirceu de Oliveira Medeiros 
Bispo de Camaçari (BA)

Neste texto, gostaria de chamar a atenção para a pureza de Santa Dulce. Quem lê suas cartas, dentre outras virtudes que ornaram a vida desta Santa, percebe logo que suas palavras estão carregadas da pureza cristã, uma característica daqueles que vivem a intimidade com o Senhor. Eu diria, uma fé quase pueril, de quem teve um coração de criança. O Salmista afirma que o perfeito louvor brota dos lábios dos mais pequeninos (Sl 8, 3). Estamos no ano da oração, em preparação para o grande Jubileu da Esperança, portanto, como Igreja queremos renovar o nosso pedido ao Senhor: ensina-nos a orar!  

A oração deve brotar das profundezas da alma que tem sede de Deus, assim como Deus tem sede de nós. O Catecismo da Igreja Católica diz que a oração é o encontro de duas sedes: a nossa e a de Deus (CIgC n. 2560).  E a oração sincera e agradável a Deus não brota do alto de nossa arrogância, mas das profundezas de nossas almas. Deus se agrada da prece do simples e rejeita a do arrogante.  Santa Dulce é exemplo de perfeita entrega ao Senhor, a começar por sua vida de oração, sem a qual não teria feito o que fez.  A este respeito, cito um singelo bilhete de sua autoria:  

Como Jesus é bom! Concedeu-me não só a felicidade de me tornar sua Esposa, mais ainda, deu-me o presente de eu ver o papai, tê-Lo em seu coração! E eu espero, minha mãezinha, que papai fique mais religioso agora. Porém, ainda não tratei de um assunto, que para mim tem importância, que é o das Bodas de Prata da vossa cura milagrosa em Lourdes! Ah como a Mãezinha do Céu é boa! Amanhã, na adoração mais uma vez quero agradecer-Lhe. No dia 15, fomos em Procissão à gruta com velas acesas e cantamos hinos à querida Mãezinha do Céu. O papai ainda estava aqui. Eu, minha mãezinha, sinto-me feliz, muito feliz, de ser vossa filha e principalmente de que pertenço a nossa querida Congregação, pois é a da Imaculada Conceição. 

Terminando, agradeço os santinhos que me enviou e peço-vos rezais para que eu seja uma fiel Professa! Também não me esquecerei de vós, boa mãezinha, e, com respeito filial, pede-vos a bênção a filhinha e serva em Jesus, Maria e José! Irmã Dulce. 

Uma carta irradiante de pureza, a pureza de coração emana desse enamoramento com o Senhor. É precisamente a essa dimensão relacional que todo consagrado é chamado: Viver a procura do amado, com quem deve ter uma relação esponsal. “Eu sou do meu amado e o meu amado é meu” (Ct 2, 16). Neste mundo marcado por tanta desorientação, temos a missão de ajudar as pessoas a procurá-lo pelas ruas e praças, como a amada do Livro dos Cantares de Salomão. Era esta a atitude interior do anjo bom da Bahia, palpitava em seu coração o anseio de encontrar o amado onde quer que ele possa estar. Por isso, ela o procurava incansavelmente em baixo das pontes, nas vielas e palafitas e sempre o reconhecia tocando a carne do pobre.  

Mas que pureza é esta? Permitam-me outro relato, este da vida de São Luiz Gonzaga, para explicar o sentido amplo da pureza, a qual não se reduz somente ao aspecto da moralidade, mas possui incidência sobre todo o ser da pessoa, afinal todo consagrado é chamado a cultivar um coração indiviso. Este é o verdadeiro significado da pureza, integração da consciência e dos afetos, um “eu” não fragmentado, ao invés, concentrado no único necessário (Lc 10, 42).  

 Eis o que escreveu um jesuíta sobre esse outro grande Santo e que perfeitamente poderia se aplicar a Santa Dulce dos Pobres:  

“É louco! É louco!” gritava o enfermeiro de um pequeno hospital enquanto via o jovem Luiz Gonzaga, com o seu hábito preto transportando nos braços uma vítima da peste. “Ele vai ser contaminado com a doença!” continuou a gritar o enfermeiro. Aproximou-se, então, um jesuíta ancião que estava administrando os sacramentos aos enfermos e disse: “Amigo, você sabe o que é a pureza? Eis ali, diante de teus olhos!” disse o jesuíta apontando para Luís. “A pureza é saber sujar as mãos quando existe necessidade. A pureza é morrer por alguém que não vale nada aos olhos do mundo. Para alguém puro de coração como este jovem, aquele pobre doente é como o Santíssimo Sacramento. Veja como ele o abraça!”. “Mas, como pode um dos Gonzagas ser reduzido a isso?”, disse, quase chorando o enfermeiro. “Não diga isso!” disse o jesuíta ancião, “Este garoto vê mais longe que todos. Entendeu profundamente o que ensinou Nosso Senhor: ‘Quem quiser ser o primeiro que se faça servo de todos!’. A família Gonzaga, com o tempo, será esquecida por todos. Mas este garoto não, porque ele escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada”. 

 Estas palavras ditas sobre São Luiz Gonzaga se aplicam a Santa Dulce, os famosos e grandes serão esquecidos, mas o seu nome continua a brilhar em nossos lábios, pois ele viveu a verdadeira pureza que consiste em “saber sujar as mãos quando existe necessidade”. “É morrer e se doar por alguém que não vale nada aos olhos do mundo.” 

Em 1976, Santa Dulce colocou no bolso do então presidente da república, Ernesto Geisel, o seguinte bilhete: “Estimado presidente (…) quando estiver voando aí no céu, perto de Deus, lembre-se de meu pedido e ajude nossos pobres aqui na terra”! Ela procurava sensibilizar o coração daquele homem. Enquanto a Bem-aventurada Francisca de Paula de Jesus, Nhá Chica, foi a nossa nova Débora (Jz 4-5), Santa Dulce poderia ser comparada à Rainha Ester, pois comparecia na presença dos poderosos não com intenções escusas para pedir algo para si, mas com o intento de pedir para os pobres, imagem do Cristo sofredor. O jornalista baiano José Augusto Berbert de Castro escreveu sobre ela: Dulce é a “própria caridade”. A caridade perambulou pelas ruas de Salvador, pelos alagados e deixou um rastro de luz. Em nossa sociedade carente de referências ela continua a brilhar como luz lunar que reflete a luz plena do astro rei, o sol da justiça que é Cristo Nosso Senhor, mesmo em sua fragilidade física, Dulce manifestou ao mundo extraordinária força que brotava da intimidade com Ele, o amado! 

 

 

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