Dom Leomar Brustolin
Arcebispo de Santa Maria (RS)
A hospitalidade ocupa lugar de notável centralidade na tradição cristã, sendo compreendida não apenas como um gesto cultura ou uma prática social, mas como expressão concreta da misericórdia divina – fundamento da ética evangélica. No contexto eclesial contemporâneo, especialmente à luz das orientações do Papa Francisco na Exortação Apostólica Amoris Laetitia, essa noção é ressignificada, assumindo contornos ainda mais amplos: trata-se de um compromisso ético, espiritual e social que interpela toda a comunidade cristã.
Na Sagrada Escritura, a acolhida ao estrangeiro, ao peregrino e ao necessitado é elevada à condição de mandamento sagrado. O Livro do Levítico (Lv 19,34) ordena amar o forasteiro como a si mesmo, relembrando a experiência do povo de Israel como estrangeiro no Egito. De modo semelhante, o Deuteronômio (Dt 10,18) apresenta o próprio Deus como defensor dos peregrinos, enfatizando o caráter sagrado do cuidado com quem se encontra em situação de vulnerabilidade e deslocamento. Essa mística da hospitalidade encontra expressão paradigmática na narrativa de Abraão e Sara em Mambré (Gn 18,2-8), quando, ao acolherem três visitantes misteriosos, oferecem hospitalidade ao próprio Deus – mistério posteriormente interpretado à luiz da Trindade Santa.
No Novo Testamento, a prática da acolhida perpassa a vida e o ministério de Jesus Cristo. Diversos episódios relevam essa dinâmica: hospitalidade de Marta, Maria e Lázaro; a conversão de Zaqueu no encontro com Cristo em sua casa; e a ausência de acolhida por parte de Simão, contrastando com o gesto afetuoso da mulher pecadora. Destaca-se, ainda, a experiência dos discípulos de Emaús; é no gesto de acolher o forasteiro e no partir do pão que reconhecem o Ressuscitado. A hospitalidade, portanto, revela-se como lugar de manifestação da presença divina.
A tradição cristã posterior não apenas preservou como também institucionalizou essa espiritualidade. São Paulo exorta a comunidade de Roma: “praticai a hospitalidade” (Rm 12,9.13). São Bento, em sua Regra, orienta que o hóspede seja recebido como o próprio Cristo peregrino (RB 53, 1-2), prescrevendo uma atitude de humildade e reverência diante daquele que chega. A Carta a Diogneto, por sua vez, reforça a autocompreensão dos cristãos como estrangeiros neste mundo, desafiados a construir relações de hospitalidade universal.
Nos dias atuais, a prática da acolhida adquire novas urgências e desafios, especialmente diante das crises migratórias, dos deslocamentos forçados e da exclusão social. A hospitalidade cristã, assim, ultrapassa o âmbito do lar e da comunidade para se tornar exigência concreta de misericórdia nas esferas pública, social e política. Acolher o migrante, o refugiado, o empobrecido, é responder com gestos evangélicos à dor dos que mais sofrem.
A acolhida, como expressão da cidade cristã, é a superação da indiferença, abertura sincera ao outro, especialmente aos que foram socialmente marginalizados. Em Amoris Laetitia (n. 324), o Papa Francisco afirma que a família, além de gerar e cuidar da vida, é chamada a irradiar esse cuidado para além de si, promovendo o bem comum e exercitando uma hospitalidade cotidiana, silenciosa e eficaz.
A misericórdia cristã manifesta-se, portanto, como atitude ativa e integral de acolhimento – um amor que não se limita a formalidades, mas se materializa no serviço ao próximo. Retoma-se, assim, a palavra de Cristo em Mateus 25: “Eu era estrangeiro e me acolhestes”. Acolher, nesse horizonte, não é apenas um gesto humanitário, mas critério de salvação. Ser misericordioso, à luz da fé cristã, é reconhecer no outro — sobretudo no vulnerável, no migrante e no excluído — a presença viva do próprio Deus. É assumir, em todas as dimensões da convivência humana, a responsabilidade ética e espiritual de acolher como expressão de fé que se traduz em obras.
