Dom Itacir Brassiani
Bispo de Santa Cruz do Sul (RS)
As comunidades cristãs católicas celebram nesta semana um evento muito solene e popular: a festa de Corpus Christi. Nascida na Europa no século XIII, essa solenidade conheceu notável expansão no catolicismo ibérico, chegou ao Brasil através dos portugueses e caiu no gosto popular do povo brasileiro. Celebrado nas ruas com traços artísticos barrocos, chegou a se tornar um evento cultural bastante popular, ainda hoje celebrado em muitos lugares com uma certa nostalgia.
Como todo evento que se prolonga na história, a festa de Corpus Christi foi se afastando da sua motivação e núcleo espiritual originais. Nascida do apreço pelo mistério central da Eucaristia e da sua força simbólica na vida dos fiéis, a festa foi arrastada para dentro do confronto do catolicismo com o movimento protestante. Ao mesmo tempo, foi perdendo sua relação intrínseca com o mistério pascal – paixão, morte e ressurreição de Jesus – e praticamente adquiriu vida própria, perdendo o vínculo com a Ceia Eucarística.
Hoje, mesmo conservando uma grande beleza artística e uma criatividade popular que impressiona, a festa de Corpus Christi corre o risco de se tornar apenas um evento folclórico. É preciso retomar sua raiz eucarística, sua vinculação indissociável com a vida e a missão de Jesus. Num tempo em que o reconhecimento, o diálogo e a cooperação entre as Igrejas Cristãs são necessários para a credibilidade do nosso anúncio, a festa também deve se desvencilhar dos laços que a prendem ao confronto religioso.
Visitemos então, mesmo que muito rapidamente, o coração teológico e espiritual que dá sentido à festa de Corpus Christi. Quando está no auge de sua missão de revelar a Misericórdia e a Graça que reconhece e estabelece a dignidade de todas as criaturas, Jesus percebe que seu destino histórico está sendo definido nas salas escuras do templo e do Sinédrio. Ao mesmo tempo, intui com clareza meridiana que não pode recuar, pois estaria apagando as cores vivas com as quais Deus pinta sua fidelidade ao seu povo.
Consciente de que havia chegado a sua Hora, Jesus antecipou sua entrega radical e incondicional ao Pai e ao Povo de Deus numa ceia regada a pão, vinho e lealdade. Num pão abençoado e repartido entre todos, e num brinde à fidelidade de Deus mediante uma taça de vinho, Jesus assina, em nome do Pai, uma aliança nova e perene com seu povo. E pede que, para mantê-lo presente e vivo, seus discípulos repitam seu gesto vital. Depois, numa atitude profética e provocativa, lava os pés dos discípulos, solapando o fundamento de todo pensamento ou atitude supremacista e dominadora.
Na Eucaristia está escrito com letras de amor e de sangue o testamento histórico e espiritual de Jesus Cristo. O corpo de Cristo é um corpo ferido, uma vida doada e um pão repartido para que a humanidade tenha vida e o mundo busque a paz sem descanso. Não é possível celebrar a Eucaristia e a festa de Corpus Christi e “viver para si mesmo”. Não é aceitável ornamentar as ruas com tapetes coloridos e fechar o coração e a porta aos próximos e aos distantes. Não é admissível receber o corpo de Cristo na Santa Ceia e se recusar a fazer o que ele fez, a viver como ele viveu. Adoramos o Santíssimo Sacramento porque queremos viver o seu dinamismo em tudo e todos os dias.
