Dom Geraldo dos Reis Maia
Bispo de Araçuaí (MG)

 

A povoação no Vale do Jequitinhonha se iniciou com conflitos. Como nos relatam Mário Ferreira e Dostoievsky Brasil, na obra “Tempo, cultura e espaço – Notas sobre Araçuaí” (São Paulo: Dialética, 2024), essa povoação “é marcada historicamente por encontros nem sempre harmoniosos”. Tais encontros “se configuravam muitas vezes como saques, opressão, coisificação dos sujeitos, estupros, que não reconhecem no outro traço algum de humanidade” (2024, 20). Há registros de vários povos indígenas que habitavam essa região ou por ela passavam como nômades, especialmente os Borum, Maxacali e Macuni. Os que não foram dizimados, foram desconfigurados culturalmente. 

Para essa região, foram trazidos os escravizados negros pelo sistema colonial. “As pessoas negras escravizadas nesta região foram distribuídas como coisas em fazendas de coronéis ou latifundiários” (2024, p. 30). Há registros de que, em 1874, haviam 3.148 escravizados no município de Araçuaí e, em 1885, o número cai para 2.832. Tal diminuição gradual dos escravizados deu-se mais por causa mortis que por processo de alforria (id., p. 32). Daí a origem de as comunidades quilombolas serem tão presentes na região. 

Continuam os historiadores: “As lutas pela liberdade de escravizados, juridicamente libertos pela lei áurea em 1888, que liberta o estado servil, não garantiram direitos ou reparação histórica. As comunidades de remanescentes quilombolas no território de Araçuaí são o retrato daqueles que conseguiram passar pelo século XX, resistindo pela manutenção do ‘sonho da liberdade’ almejado pelos antepassados” (id., p. 32). 

Essas duas abordagens são paradigmáticas para retratar a realidade de todo o Vale do Jequitinhonha, guardadas as devidas proporções em partes específicas da região. A violência dos conflitos tornou-se constitutiva na cultura local: dizimação e desconfiguração dos indígenas, segregação e preconceito em relação aos afrodescendentes. Trata-se de dois grupos étnicos que são agredidos historicamente até os dias atuais. Continuamos a perceber conflitos gerados por violências em relação a eles, que seguem lutando com resistência pelo reconhecimento de suas tradições e cultura. 

Outra realidade que gerou e continua a gerar constantes conflitos é o garimpo. Conta a história que as primeiras expedições chegaram a essa região, motivadas pelas notícias de que haviam por aqui pedras brilhantes, que supunham ser esmeraldas, em grande quantidade (id., pp. 17-18). A busca pela riqueza foi consolidando o garimpo, com disputas de território e conflitos com os povos que habitavam esses vales. À medida que encontravam pedras preciosas e ouro, os conflitos aumentavam, com a dizimação de povos indígenas e a intensificação da cultura escravagista. 

Nas últimas décadas, novos fenômenos contribuíram para o incremento de conflitos: a implantação da monocultura do eucalipto, a extração de granito e a atividade minerária, com a descoberta de grandes reservas de lítio. Essas novas atividades de interferência na ecologia da região têm gerado seríssimos impactos socioambientais, com prejuízo para as populações mais vulneráveis, como os povos tradicionais, especialmente indígenas e quilombolas, além das agressões aos ecossistemas. 

As atividades minerárias na região precisam ser acompanhadas com atenção e senso crítico, para evitar o sério risco de agressão à ecologia integral. Nisso, o Ministério Público, grupos de estudo de universidades, institutos e entidades variadas têm contribuído com muita competência. Compreendemos que tudo tem o seu preço, toda a atividade minerária gera seus impactos. O que não se pode transigir é que esses impactos agridam povos tradicionais e residentes, em áreas próximas a essas atividades minerárias, intensificando conflitos já presentes na região. O cuidado com a ecologia integral é igualmente importante. Não se pode transformar o Vale do Jequitinhonha numa zona de conflito. 

Órgãos de pesquisa ligados a universidades, como também o Ministério Público, tanto Estadual como Federal, além de organizações socioambientais e a imprensa, não cessam de denunciar os danosos impactos que vêm sendo acarretados aos povos tradicionais e à ecologia integral como um todo, em consequência da mineração na região. Mesmo que apenas três grandes empresas que atuam na área de mineração estejam em atividades, estima-se que, em breve, esse número seja bem mais elevado, devido aos processos de pesquisa e licitação em andamento, além de solicitações de ampliação das atividades minerárias por parte de empresas que já atuam na região. 

Vem aumentando o número de processos jurídicos em relação à questão ambiental também em outras localidades da região do Vale do Jequitinhonha. Impactos causados por grandes empresas têm afetado a preservação das nascentes, da fauna, da flora, interferindo no clima, no abastecimento de água e em várias comunidades tradicionais. As entidades de bom senso, que se preocupam com a preservação da ecologia integral, são chamadas a estarem bem atentas para denunciar esses danosos impactos e acionar as instituições do Estado Democrático de Direito para cuidar de nossa Casa Comum. 

Basta de conflitos nestes belos vales do Jequitinhonha, do Mucuri e do Rio Pardo! Queremos que prevaleça a harmonia entre os povos, o respeito pela dignidade humana das pessoas mais vulneráveis, a justiça social, o bem comum, o cuidado pela ecologia integral, na construção de uma sociedade justa e igualitária, condição para se obter a paz tão sonhada. Conclamamos a todos para seguir no esperançar, acreditando que outro mundo é possível. Acreditando, esperançando, edificando… 

“A morte não existirá mais, e não haverá mais luto, nem grito, nem dor, porque as coisas de antes passaram” (Ap 21,4b). Eis o sonho de Deus… e o nosso também! Mero sonho? “Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isto não tem muita importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado”. (W. Shakespeare, Sonho de uma Noite de Verão).

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