Dom Leomar Antônio Brustolin
Arcebispo de Santa Maria (RS)
A doutrina da Criação é uma das colunas da fé cristã. Desde as primeiras profissões de fé — como o Símbolo dos Apóstolos e o Credo Niceno-Constantinopolitano — a Igreja sempre afirmou: “Cremos em Deus Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”. No entanto, ao longo da história, diversos erros surgiram e continuam, de forma atualizada, a confundir a mente e o coração de muitos.
Dualismo: dois princípios em conflito
Um dos primeiros equívocos foi o maniqueísmo, herança de religiões orientais, que afirmava dois princípios eternos: um do bem (Deus) e outro do mal (matéria ou diabo). Prisciliano difundiu essas ideias na Espanha, no século IV. A Igreja reagiu com firmeza: tudo foi criado por um só Deus, que é sumamente bom, como reafirmado nos concílios de Saragoça (380), Bordeaux (384) e Toledo (400).
Esse dualismo ainda persiste, de forma disfarçada, quando se pensa que corpo e espírito são inimigos ou que o mundo material é um mal a ser vencido. A doutrina católica, ao contrário, afirma que o corpo é dom de Deus e parte da dignidade humana, como recorda o Catecismo da Igreja (n. 362-368). Assim, somos chamados a cuidar do nosso corpo e da criação como expressões do amor ao Criador.
Panteísmo e materialismo: distorções opostas
Em tempos mais recentes, surgiram o panteísmo, que identifica Deus com o mundo, e o materialismo, que nega qualquer realidade além da matéria. Ambos rejeitam o Deus pessoal, transcendente, criador do universo a partir do nada. Essas doutrinas foram condenadas por Pio IX no Syllabus (1864) e no Concílio Vaticano I (1870), que reafirmou: Deus criou livremente tudo o que existe, visível e invisível, com amor e sabedoria.
Hoje, esses erros reaparecem em espiritualismos difusos que diluem Deus na natureza, ou em correntes cientificistas que ignoram a dimensão espiritual do ser humano. A fé católica, porém, mantém sua clareza: Deus é distinto do mundo e, ao mesmo tempo, presente nele como Criador e Senhor. Ele é fundamento e o sentido de tudo o que existe.
O mal como ausência do bem
Outra confusão frequente é imaginar que o mal tenha sido criado por Deus. Os concílios de Braga (561) e Latrão (1215) esclarecem: o mal não é criação, mas ausência do bem; não tem natureza própria, mas nasce da liberdade mal usada por criaturas espirituais ou humanas.
Hoje, o mal é frequentemente relativizado, tratado como disfunção social ou psicológica. No entanto, a fé cristã afirma a existência do pecado e reconhece a liberdade como centro dessa realidade: a escolha entre o bem e o mal permanece um drama humano e espiritual. Por isso, é essencial cultivar a vigilância e o discernimento, confiando na graça de Deus para escolher sempre o amor.
Deus não é um “relojoeiro ausente”
O deísmo ensinava que Deus criou o mundo, mas depois se retirou. Essa ideia foi rejeitada pelo Concílio Vaticano I, que reafirmou a presença contínua de Deus na criação, sustentando-a e conduzindo-a por sua Providência. Muitos, hoje, adotam uma imagem vaga de um “Deus distante”, mas o Deus cristão é o Deus da Aliança, que chama, orienta e salva.
Criação e história da salvação caminham juntas, e Jesus Cristo é o centro dessa unidade, revelando a face amorosa do Criador. Em Cristo, contemplamos o Deus que nos acompanha, nos guia e nos quer próximos do Seu Coração.
Fé e ciência em diálogo
Diante das descobertas da ciência, a Igreja permanece aberta. A Teoria da Evolução pode ser acolhida como explicação científica dos processos da vida, desde que se reconheça que a alma humana é criada diretamente por Deus. A Encíclica Humani Generis (1950) e os ensinamentos de João Paulo II e Bento XVI reforçam essa harmonia possível entre fé e razão.
Corrigir erros com luz e esperança
Compreender a criação é essencial para entender quem somos, de onde viemos e para onde vamos. A Igreja, ao longo dos séculos, corrigiu desvios, reafirmou a verdade revelada e mostrou que o mundo é obra do amor e da liberdade do Deus Trindade.
Em tempos de relativismo e confusões espirituais, é urgente proclamar com clareza e esperança: tudo vem de Deus, tudo é sustentado por Ele e tudo deve voltar a Ele. A criação é dom e vocação. Como ensina São Tomás de Aquino, “a criação é a relação do ser com seu princípio” — e esse princípio é o Amor. Amor que nos chama à comunhão com Deus e com toda a criação, para que, em cada gesto e cuidado, reconheçamos a bondade daquele que nos sustenta e nos conduz.
