Aparecida: sacramento, profecia e missão para o povo brasileiro 

Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ) 

 

Reunimo-nos, mais uma vez, sob o olhar terno e materno da Virgem Aparecida, para celebrar a grande Solenidade de nossa Padroeira. Este dia, 12 de outubro, transcende a mera contagem do tempo – o chronos de nosso calendário – para se tornar um verdadeiro kairós: um tempo de graça, um momento significativo em que o céu toca a terra e a história da salvação se revela com um sotaque inconfundivelmente brasileiro. Aqui, na casa da Mãe, não celebramos uma memória distante, mas uma presença viva e atuante que moldou a alma de nossa gente e continua a interpelar o nosso presente e a iluminar o nosso futuro. Nossa missão, nesta solene liturgia, é ir além da emoção devocional, por mais legítima que seja, para mergulhar, com a inteligência da fé, no denso conteúdo teológico, profético e missionário que emana deste singular evento de graça ocorrido nas águas do Rio Paraíba do Sul. 

Para compreender Aparecida, devemos situá-la no grande fluxo da História da Salvação. A Primeira Leitura, extraída do Livro de Ester – Est 5,1b-2;7,2b-3 –, nos oferece a chave de leitura da intercessão régia. A Rainha Ester, uma figura de coragem e fé, arrisca sua vida para salvar seu povo. Sua atitude prefigura a missão de Maria, a Nova Eva, que, ao contrário da primeira, não dialogou com a serpente, mas esmagou sua cabeça com o “sim” de sua obediência, como prometido no Protoevangelho (cf. Gn 3,15). Maria é a Rainha que não intercede diante de um rei terreno, mas se assenta à direita de seu Filho, o Rei do Universo, para apresentar-lhe as súplicas de seus filhos. Como nos ensina o Concílio Ecumênico Vaticano II, na Constituição Dogmática Lumen Gentium, Maria, “com o seu amor de mãe, cuida dos irmãos de seu Filho que ainda peregrinam e se acham em perigos e ansiedades, até que sejam conduzidos à pátria bem-aventurada” (LG, 62). 

É nesta perspectiva que devemos contemplar o evento de 1717. Não foi um acaso. Deus irrompe na história concreta, no Brasil Colônia, num contexto de dificuldades econômicas e de tensões sociais, durante a visita do Conde de Assumar, Dom Pedro de Almeida. E o faz da maneira mais desconcertante. A manifestação divina não ocorre com pompa, mas na labuta frustrada de três pescadores, homens pobres e anônimos, cujos nomes, no entanto, a fé fez questão de eternizar: Domingos Garcia, João Alves e Filipe Pedroso. Eles são os anawim Adonai, os “pobres de Javé”, a quem Deus sempre se revela, confirmando o canto profético da própria Virgem em seu Magnificat: “Depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos” (Lc 1,52-53). 

Cada elemento daquele encontro é um denso sinal teológico, um evangelho não escrito: 

O Rio: É o fluxo da vida, da história, do trabalho e do suor do povo brasileiro. É nas águas, símbolo do Batismo, que a Mãe da Igreja se deixa encontrar. 

A Rede: Símbolo da missão da Igreja, lançada nas águas, por vezes turvas, do mundo. É a Igreja-pescadora que, em sua missão, encontra a presença de Maria. 

A Imagem Quebrada: Este é talvez o mais forte dos símbolos. O corpo separado da cabeça. É o retrato de um Brasil fraturado, de um povo dividido pelo pecado social, pela injustiça, pelo abismo entre ricos e pobres.  

A Reunificação: O reencontro do corpo e da cabeça dentro da rede é a grande profecia de Aparecida: a vocação do Brasil é a unidade na diversidade, a reconciliação. A unidade, como rezou o próprio Cristo, é condição para a credibilidade da missão: “Para que todos sejam um, a fim de que o mundo creia” (Jo 17,21). 

A Cor Negra: A imagem enegrecida é um ícone da inculturação da fé e uma denúncia profética. Maria assume a cor dos filhos mais sofridos, dos escravizados, dos marginalizados. Como nos recorda o Documento de Aparecida, a Igreja na América Latina tem uma dívida histórica com os afrodescendentes e os povos indígenas, e é chamada a promover “o reconhecimento de seus direitos e sua cidadania” (DAp, 96). Nossa Senhora, com sua cor, fez isso antes de nós. 

A Pesca Abundante: A consequência imediata da presença reconciliada da Mãe é a abundância, a graça superabundante. É o sinal de que uma nação e uma Igreja reconciliadas e unidas em Cristo se tornam fecundas e capazes de gerar vida. 

 

A Segunda Leitura, do Livro do Apocalipse – Ap 12,1.5.13a.15-16a –, nos apresenta a visão da “Mulher vestida de sol” (Ap 12,1), em luta contra o Dragão. Esta imagem não é uma peça de mitologia antiga; é o retrato da batalha espiritual que se trava hoje, no coração do mundo e no coração do Brasil. O Dragão, hoje, assume múltiplos rostos. 

É o dragão de uma economia que idolatra o lucro e descarta pessoas, como denunciou incansavelmente o Papa Francisco em documentos como a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium e a Carta Encíclica Fratelli Tutti. É o dragão da violência que ceifa vidas, especialmente de jovens nas periferias. É o dragão da mentira, que se espalha pelas redes sociais, destruindo reputações e fomentando o ódio que corrói o tecido social. É o dragão do relativismo, que ataca a sacralidade da vida desde a concepção até a morte natural e desfigura o projeto de Deus para a família. E, como nos recorda a Carta Encíclica Laudato Si’, é também o dragão da exploração irresponsável de nossa casa comum, que fere a Amazônia, nosso santuário ecológico, e compromete o futuro das novas gerações. 

A fé em Nossa Senhora Aparecida nos convoca a uma leitura crítica e profética da realidade. A mesma Mãe que se compadeceu da necessidade dos noivos em Caná, hoje se compadece da falta do “vinho da justiça, da paz e da dignidade para tantos de seus filhos brasileiros. 

É, pois, no Santo Evangelho segundo São João – Jo 2,1-11 –, na narrativa das Bodas de Caná, que encontramos a síntese de nossa missão. Diante do problema concreto, Maria nos oferece uma única instrução, um verdadeiro testamento espiritual que se torna o programa pastoral para a Igreja no Brasil: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5). Este mandato nos chama a uma conversão radical e a um compromisso missionário em todas as esferas da vida. 

“Fazer o que Jesus nos disser” implica, antes de tudo, uma renovada escuta de sua Palavra e uma vida de oração mais profunda. Mas se desdobra em compromissos inadiáveis: 

Para a Igreja: Jesus nos manda ser sal da terra e luz do mundo (cf. Mt 5,13-14). Devemos, portanto, superar toda tentação de autorreferencialidade e nos tornarmos uma “Igreja em saída”, um “hospital de campanha” que vai ao encontro dos feridos nas estradas da vida, com um testemunho profético contra a injustiça e com gestos concretos de misericórdia. 

Para os Leigos e Leigas: Jesus nos manda amar uns aos outros (cf. Jo 15,12). Isso se traduz, para os fiéis leigos, na vocação de santificar o mundo a partir de dentro. Na política, significa atuar com ética, buscando o bem comum segundo os princípios da Doutrina Social da Igreja. Na economia, significa promover empresas e práticas que respeitem a dignidade do trabalhador e o cuidado com a criação. Na cultura e na educação, significa formar as consciências para a verdade e a beleza do Evangelho. 

Para as Famílias: Jesus abençoou o casamento em Caná, elevando-o à dignidade de sacramento. “Fazer o que Ele nos disser” significa, para as famílias, serem verdadeiras “igrejas domésticas”, santuários da vida, escolas de oração e de virtudes humanas e cristãs, resistindo às ideologias que buscam desconstruir sua identidade. 

Para a Nação: Jesus nos ensina a buscar o Reino de Deus e a sua justiça (cf. Mt 6,33). O mandato de Caná é um chamado à reconciliação nacional. É um apelo à superação da polarização estéril e à construção de uma “amizade social”, baseada no diálogo, no respeito mútuo e na busca conjunta de soluções para os graves problemas que nos afligem. 

A solenidade de Aparecida é um dom, mas também uma grande responsabilidade. Ela nos recorda que somos um povo abençoado, um povo que mereceu a visita de sua Mãe. 

Elevemos, pois, nossa prece, consagrando solenemente nossa Pátria à sua Rainha.

A vós, Senhora Aparecida, consagramos a Santa Igreja, para que seja sempre fiel e missionária. Consagramos nossas famílias, para que sejam berços de vida e de fé. Consagramos nossos governantes, para que legislem com justiça e governem com retidão, buscando sempre o bem de todos. Consagramos nossos jovens, para que, inspirados em vosso “sim”, tenham a coragem de responder ao chamado de Deus. Consagramos os trabalhadores, os desempregados, os doentes e os que sofrem, para que encontrem em vós alívio e esperança. Consagramos a Amazônia e todos os biomas de nossa casa comum, para que saibamos cuidar da criação de Deus. 

Ó Virgem Santíssima, Mãe Aparecida, livrai o Brasil dos males que o ameaçam. Sustentai a fé de vosso povo. Ensinai-nos a ser uma Nação unida e fraterna. E que, guiados por vossa mão, saibamos sempre e em tudo “fazer o que Jesus nos disser”, para que o vinho novo do Reino de Deus se derrame com abundância sobre a terra de Santa Cruz.  

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