Dom Juarez Albino Destro
Bispo Auxiliar de Porto Alegre (RS)
Não, não me refiro ao famoso René Descartes, mundialmente conhecido pela frase que, certamente, já escutamos em algum momento da vida: “Penso, logo existo” (em latim: Cogito, ergo sum). O filósofo e matemático francês viveu entre os anos 1596 e 1650. Autor do “Discurso sobre o Método”, publicado em 1637, seu pensamento deu origem à Filosofia Moderna. Evidência, análise, síntese, enumeração, racionalismo, conhecimento…
Justamente no dia em que eu estava concluindo a leitura – agradável – da autobiografia do papa Francisco, Esperança, naquela parte onde faz referência à sua última Encíclica, a quarta de seu pontificado de 12 anos, com o título em latim: Dilexit nos, sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus Cristo, as notícias não paravam de chegar – desagradáveis – sobre as consequências da chamada “Operação Contenção”, em nossa querida e bela São Sebastião do Rio de Janeiro. “Ver avós chorarem sem que isso seja intolerável só pode ser sinal de um mundo sem coração”, afirmava o papa, referindo-se ao escândalo com o qual se confrontava “demasiadas vezes em demasiadas viagens, em demasiadas audiências, num mundo dilacerado por conflitos devastadores” (p. 348). Nas fotos estampadas no dia seguinte ao que ocorreu naquele conflito nos Complexos da Penha e do Alemão, impossível não se emocionar, sentir um “nó na garganta”, imaginando o choro daquela gente, pais, mães, avós, filhos… Intolerável! E os mortos? Anjos ou demônios? Certamente veremos “juízes” de ambos os lados!
No sábado celebraremos a Solenidade de Todos os Santos, um dia para recordarmos nossa vocação, nosso chamado à santidade. Os santos e santas são os nossos numerosos intercessores. A eles costumamos pedir que interceda a Deus por nós. Como lemos no Apocalipse, um dos livros da Bíblia, trata-se de “uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Quem são esses? São os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro” (Ap 7,9.13-14). A Igreja nos propõe os exemplos dos santos para chegarmos a Deus. Mas, por sermos seus filhos e filhas, somos todos chamados à santidade! Desde as primeiras páginas da Bíblia, de várias maneiras, percebemos este chamado: “Anda na minha presença e sê perfeito” (Gn 17,1); “Antes da fundação do mundo Deus nos escolheu para sermos santos e irrepreensíveis diante dele no amor” (Ef 1,4). E o Papa Francisco, falecido há pouco mais de seis meses, dentre tantos belos escritos deixados, presenteou-nos também com uma Exortação Apostólica sobre o chamado à santidade no mundo atual: Gaudete et Exsultate (Alegrai-vos e Exultai). Nesse documento ele nos recorda que não devemos pensar que os santos sejam apenas aquelas pessoas já beatificadas e canonizadas: “Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração. Não é assim. Todos somos chamados a ser santos, vivendo com amor e oferecendo o próprio testemunho nas ocupações de cada dia, onde cada um se encontra” (GEx 14). E o Papa Francisco nos encoraja: “Não tenhas medo […] de te deixares amar e libertar por Deus. Não tenhas medo de te deixares guiar pelo Espírito Santo. A santidade não te torna menos humano, porque é o encontro da tua fragilidade com a força da graça” (GEx 34). Nessa frase ele acaba nos dando uma definição do que seja santidade: o encontro da nossa fragilidade com a força da graça de Deus! Em outras palavras, o encontro do humano com o divino! Isso nos dá um alento e nos estimula a praticar, no dia a dia, as bem-aventuranças proferidas por Jesus (cf. Mt 5,1-12): desapego, paciência, mansidão, misericórdia, pureza de coração, paz, justiça, alegria, ousadia, ardor… Desafios!
No domingo faremos memória de todos aqueles que já passaram por essa vida e que estão vivos em outra dimensão. Alimentamos, claro, uma saudável saudade em relação aos nossos entes queridos que já não se encontram entre nós. No entanto, fazer memória dos falecidos é também ocasião para recordarmos que a morte é certa para todos e que podemos melhor projetar nossa vida, dando espaço para refletir sobre o autêntico sentido da vida. A morte, pois, ensina-nos a viver! E Deus é o Deus da vida, não é um Deus de mortos, mas de vivos, lemos em São Marcos (12,27). O Texto Conclusivo de Aparecida, a 5ª Conferência do Episcopado Latino-americano e Caribenho, de 2007, tratando dessa questão, afirmou que devemos “neutralizar a cultura da morte com a cultura cristã da solidariedade” (DAp 480), pois não queremos “andar pelas sombras da morte” (DAp 350), mas, sim, no caminho da vida, pois “a vida é presente gratuito de Deus, dom e tarefa que devemos cuidar desde a concepção, em todas as suas etapas, até a morte natural, sem relativismos” (DAp 464). O Dia de Finados, portanto, junto à memória de nossos entes queridos chamados à eternidade, nos ensina, mais uma vez, o valor da vida. E nos convoca a repudiar todo e qualquer sinal de morte em nossa vida.
Na Exortação Apostólica do papa Leão XIV, Dilexi Te, sobre o amor para com os pobres, refletindo sobre as estruturas de pecado que criam pobreza e desigualdades extremas (n. 90-98), assim afirma: “Embora não faltem diversas teorias que tentam justificar o estado atual das coisas ou explicar que a racionalidade econômica nos exige esperar que as forças invisíveis do mercado resolvam tudo, a dignidade de cada pessoa humana deve ser respeitada já agora, não só amanhã, e a situação de miséria de tantas pessoas, a quem é negada esta dignidade, deve ser um apelo constante à nossa consciência” (n. 92). “A falta de equidade é a raiz dos males sociais. Com efeito, muitas vezes constata-se que, de fato, os direitos humanos não são iguais para todos” (n. 94).
Certamente, mesmo sem ser mencionado ou compreendido, Descartes, o filósofo racionalista, com seus métodos de conhecimento, será bastante utilizado nas evidências análises, sínteses, enumerações do massacre histórico de São Sebastião do Rio de Janeiro, 28 de outubro de 2025. Mas, o título deste singelo artigo quer fazer referência a um outro significado da palavra “descarte”, que nos foi aprofundada pelo saudoso papa Francisco, desde, ao menos, 2015, há 10 anos, com a sua primeira Encíclica, a Laudato Si’, sobre o cuidado da Casa Comum, a Ecologia Integral. Nas páginas finais do livro Esperança, sua autobiografia lançada no início deste ano, lemos: “Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são essenciais para salvar a humanidade” (p. 349). E, querendo indicar um antídoto ou espécie de remédio para as pessoas que não amam, ou mantém um ódio inconsciente, Francisco afirma que “o oposto mais comum ao amor de Deus, à compaixão de Deus, à misericórdia de Deus é a indiferença. Para aniquilar um homem ou uma mulher, basta ignorá-los. A indiferença é uma agressão. A indiferença pode matar. O amor não tolera indiferença” (p. 357).
A cultura do descarte, que diz respeito não apenas aos alimentos e aos bens de consumo, mas, antes de tudo, às pessoas que são marginalizadas por sistemas tecnoeconômicos em cujo centro, mesmo sem percebermos, muitas vezes não está mais a humanidade, mas seus produtos, essa cultura do descarte só pode ser superada pela educação à fraternidade e à solidariedade concreta, recorda Francisco (p. 358).
Que não fiquemos indiferentes aos tantos descartes que fazemos em nosso dia a dia, uma cultura que, de modo urgente, deve mudar.
