Dom Carmo João Rhoden
Bispo Emérito de Taubaté (SP)
Caros irmãos e irmãs em Cristo,
Proponho, por ocasião do Dia Mundial dos Pobres, uma reflexão que busca ir além do âmbito do sentimento e adentrar a esfera da nossa responsabilidade teológica e moral. Vivemos em uma época de grande confusão semântica, onde vocábulos de profunda densidade cristã são esvaziados de seu sentido original. O exemplo mais notório é a palavra “caridade”.
Frequentemente, o termo “caridade” é rebaixado a sinônimo de “filantropia” ou “assistência”, tornando-se um ato voluntário, louvável, mas, em última análise, opcional. É gesto de quem “dá o que sobra”. Esta hermenêutica é fundamentalmente falha e trai o coração do Evangelho.
O vocábulo latino Caritas (que traduz o grego Agape) não é mera benevolência; é o amor de Deus, um amor que não se baseia no mérito de quem é amado, mas na natureza de quem ama. E sendo Deus a Justiça perfeita, o Agape divino é, em sua essência, um ato de justiça.
Portanto, nossa resposta à pobreza não pode situar-se no campo do “favor”, mas sim no campo do “dever”.
Gostaria de me deter em uma passagem do Evangelho de Lucas que, a meu ver, é frequentemente mal traduzida e, por consequência, mal compreendida. Trata-se da parábola do servo que volta do campo (cf. Lc 17, 7-10). No entanto, Jesus não nos instrui a dizer: “Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17, 10).
A palavra grega achreios, traduzida como “inúteis”, gera desconforto. Deus nos veria como “inúteis”? A exegese mais apurada nos sugere que o sentido não é de “inutilidade”, mas de “aqueles que não têm direito a crédito extra”. O servo não fez nada “a mais”; ele não acumulou méritos extraordinários. Ele apenas cumpriu seu dever.
Esta correção exegética muda tudo.
Quando, servimos ao pobre, partilhando nossos bens, quando lutamos pela dignidade do trabalhador, não estamos fazendo um “favor” a Deus. Não estamos acumulando “créditos” no céu para sermos louvados. Estamos, simples e rigorosamente, fazendo o que devíamos fazer. Somos servos que apenas cumprem o dever da justiça. Ajudar ao pobre não nos torna “santos, extraordinários”; é o mínimo que nos mantém dentro da aliança batismal.
Ao contrário, a omissão, é a verdadeira falha. A indiferença diante da miséria é um pecado grave contra a justiça.
Aqui, toco no cerne da espiritualidade que norteia minha vida como Dehoniano, membro da Congregação dos Sacerdotes do Sagrado Coração de Jesus. Nossa vocação inclui a “reparação”. Mas, o que reparamos? Reparamos o Coração de Cristo, que é ferido pelos pecados do mundo.
E qual pecado fere mais o Coração de Jesus, do que a indiferença para com aqueles com quem Ele mesmo se identificou? A pobreza extrema, a fome, a criança sem lar… tudo isso não é apenas um “problema social”. É uma “chaga” teológica, uma ferida aberta e real no Corpo Místico de Cristo.
O Dia Mundial dos Pobres, cuja celebração o Magistério recente — desde o impulso do saudoso Papa Francisco até as contínuas exortações do nosso Santo Padre Leão XIV — nos conclamam, e são um chamado à reparação.
Não é, portanto, um dia para acalmar nossas consciências, com pequenos gestos. É um dia para “Sentir com Cristo e com a Igreja” — Sentire cum Christo et Ecclesia, como reza meu lema episcopal. É um convite à conversão intelectual e evangélica: parar de pensar, no pobre, como um “problema” e vê-lo como um “mestre”; parar de agir por “pena” e começar a agir por “dever de justiça”.
A verdadeira pobreza que devemos temer não é a material, mas aquela do espírito, que nos torna cegos à injustiça. A formação de nossas consciências, através do estudo sério da Doutrina Social da Igreja e da meditação profunda da Escritura, são o primeiro passo.
Que este dia, portanto, não seja um fim em si mesmo, mas o início de mudança de vida. Que possamos passar do sentimentalismo filantrópico, para a ação concreta da justiça evangélica, reparando, assim, feridas sociais que continuam a ultrajar o Sagrado Coração do nosso Redentor.
