Dom Itacir Brassiani
Bispo de Santa Cruz do Sul (RS)
Muitos sabem de cor essa simples e bela canção do Padre Zezinho, lançada há meio século atrás. Os versos continuam assim: “…Se as mães fossem Maria, e os pais fossem José; e a gente parecesse com Jesus de Nazaré”. Na verdade, celebramos no dia de Natal um acontecimento perene e grávido de consequências: a encarnação do Filho de Deus.
Por isso, o Natal de Jesus está longe de ser apenas um fervilhante evento comercial, uma colheita sazonal e abundante do turismo ou um espetáculo cultural repleto de luzes coloridas, anjos barrocos e sons harmoniosos. Também não se resume à recordação piedosa de um fato circunscrito a um casal hebreu e a uma aldeia do império romano.
O que as celebrações natalinas, oferecidas anualmente pelas Igrejas cristãs, querem lembrar é que Deus e a criatura humana não se opõem; que o céu e a terra não são realidades paralelas; que a história é o lugar onde germinam as sementes da eternidade; que a justiça dá as mãos à compaixão; que a vida humana e terrena é a morada de Deus.
Assim, o nascimento de Jesus, ocorrido no ano zero da era cristã, também não se esgota na piedade individual, celebrada na intimidade dos lares ou no interior dos templos. O Natal é muito mais que a celebração do “aniversário de Jesus”. A memória desse fato divide em dois e fecunda o tempo histórico e repercute nas relações humanas e sociais.
Não é por acaso que a narração de Lucas insere este acontecimento na moldura política do império Romano no Oriente Médio (quando o imperador César Augusto ordenou um recenseamento e Quirino era governador da Síria; cf. Lucas 2,1-2), e Mateus o situa no tempo em que o rei Herodes governava a Judéia (cf. Mateus 2,1-3). O que isso tem a ver?
Numa região e num tempo marcados pelo medo, aumentado pela presença do exército romano, aquele discreto nascimento ocorrido na periférica Belém significou coragem e alegria para os pastores e todo o povo, paz para os amados e amadas de Deus, esperançosa peregrinação para os pagãos. E, também, grande inquietação para Herodes.
Nós acolhemos o filho de José e de Maria como Filho e Enviado de Deus para “anunciar o Evangelho aos pobres, proclamar a liberdade aos presos e aos cegos a visão, para pôr em liberdade os oprimidos e proclamar um ano do agrado do Senhor” (Lucas 4,18-19). E o reconhecemos como salvação e luz para todos os povos. Mas também, desde sempre, como pedra de tropeço para muitos (cf. Lucas 2,29-35).
