Dom Roque Paloschi
Bispo de Porto Velho (RO)
Presidente do Cimi

A realidade dos Povos Indígenas sob as lonas pretas, no Sul do Brasil, pode servir como advertência aos povos da Amazônia, que através do Sínodo buscam “novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”.

Finda a tarde do dia 03 de julho de 2019, município de Aceguá, fronteira entre o Brasil e o Uruguai, dezenas de famílias Guarani Mbya, vivem às margens de estradas, onde não há água potável, alimento e agasalho para o frio intenso do inverno. Contam com algum tipo de apoio de pessoas solidárias para matar a fome. Onde vivem não tem nem casa, só barracos.  A Opy (casa de reza) não se pode construir porque não estão dentro de uma terra, mas nas margens dela. Isso implica que não podem realizar os rituais sagrados do povo, e quando alguém morre são obrigados a velar o corpo em um barraco improvisado, coberto com lona preta. O frio, o vento e a chuva são companhias permanentes.

Assim como em Aceguá existem dezenas de outros acampamentos indígenas Mbya, Nhandewa, Kaingang, sem água potável e energia elétrica, muito menos com saneamento básico. Raramente recebem visita de equipes de saúde da Sesai (Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena) e da Fundação Nacional do Índio. Estes alegam falta de recursos e de combustível para prestar atendimento às comunidades.

A terra reivindicada já foi, por diversas vezes, objeto de estudos de antropólogos que comprovaram a tradicionalidade da ocupação Guarani na região. A Funai nunca realizou os encaminhamentos devidos, porque do outro lado da cerca está uma grande fazenda onde se cria gado e se cultiva arroz, enquanto as famílias Guarani são mantidas na indigência.

A realidade de abandono dos povos indígenas é conhecida. São tratados com medidas emergenciais, longe de políticas duradouras em defesa da vida desses povos. No Rio Grande do Sul, a imagem de famílias indígenas acampadas à beira de rodovias já faz parte da paisagem. Gerações inteiras de Guarani não conheceram outra realidade a não ser a vida em acampamentos “provisórios”.

A experiência do Sul

Tomando como parâmetro a realidade dos povos indígenas nos estados do Sul do Brasil, podemos ver os efeitos de um avassalador processo de colonização, historicamente todo ele promovido e custeado pelos governos estaduais. Os estados se serviam dos soldados do exército e de empresas colonizadoras contratadas para lotear as terras e distribui-las às famílias de imigrantes. Antes, porém, as empresas promoviam a chamada “limpeza étnica”, que consistia na expulsão ou remoção forçada dos indígenas que estavam sobre as áreas a serem entregues aos colonos.

Por meio dessa política, as terras passavam a ser liberadas para exploração por empresas madeireiras e por colonos vindos da Europa. Neste contexto, se constituíram grandes fazendas e se expandiu o latifúndio. Em poucas décadas as terras foram todas cercadas, as matas devastadas, os animais extintos, os rios represados e as águas paulatinamente tornaram-se contaminadas. Cidades foram erguidas e dominaram os lugares onde habitavam povos milenares.

O que se produziu no Sul do Brasil, parece agora se reproduzir, de modo ainda mais acelerado e intenso, na Amazônia. A expansão madeireira, minerária, da agropecuária e agricultura afeta e ameaça a vida dos povos indígenas e também o ecossistema amazônico, suas matas, seus animais, as nascentes de rios, enfim, todos os bens dessa “casa comum”. O desmatamento sem controle, as grandes extensões de monocultivos transgênicos na base de agrotóxicos, a mineração e o garimpo produzem resíduos de vidas contaminadas e desesperadas. Se esse ciclo predatório de dimensões globais não for contido, as matas serão aos poucos devastadas (como já atestam os mapas da degradação ambiental, produzidos com fotos de satélite), as terras serão loteadas e entregues à indiscriminada exploração. E depois das cercas instaladas, aos povos indígenas que lá ainda estão restará, como no Sul, as margens das fazendas, as beiras das estradas ou serão convertidos em trabalhadores braçais, a serviço dos grandes proprietários de terras.

Em defesa dos direitos constitucionais

Hoje temos de um lado, povos indígenas que têm seus direitos assegurados no texto constitucional e que lhes permite viver em suas terras, cuja tradicionalidade é incontestável. Pela Constituição Federal de 1988 não deveria ter em nenhum canto do país comunidades indígenas acampadas na beira da estrada e por baixo de lonas pretas. A Lei Maior do país assegura aos povos indígenas suas organizações sociais, línguas, crenças, tradições e os direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas. A Constituição assegurou-lhes o direito de se organizar, de se manifestar, de serem consultados sobre temas que concernem aos seus territórios e suas formas de vida, rompendo-se, desse modo, com a perspectiva da tutela e da integração.

Por outro lado, os ocupantes que se dizem proprietários dessas mesmas terras, são representantes de um poder econômico privilegiado, do agronegócio e daqueles que querem anular os preceitos constitucionais. Neste contexto de disputa entre direitos constitucionais, valores humanos e interesses econômicos, o Poder Público, representando a política indigenista do Estado, protege os interesses considerados produtivos e lucrativos em detrimento dos direitos indígenas e de uma ética minimamente humana. O que se verifica, nestas circunstâncias, é que o texto constitucional e os direitos nele resguardados ficam reféns de jogos econômicos e de interesses defendidos pelo governo federal.

Confrontado com essa situação, o Sínodo para a Amazônia convocado pelo papa Francisco, a pedido de vários encontros realizados no Brasil desde 1972 (Santarém) será um kairós para levantar a voz profética da Igreja em defesa dos povos e da floresta amazônicos. Tolerância zero para todas as formas de neocolonialismo político, econômico e cultural!

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