A conversão do olhar sobre o pobre na Dilexi Te 

Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)

 

No primeiro capítulo da Dilexi te, o Papa Leão XIV propõe um desafio à Igreja e à sociedade: associar ao compromisso concreto com os pobres uma “mudança de mentalidades que tenha incidências culturais” (n. 11). Não se trata apenas de promover a assistência social, mas de transformar o modo como olhamos para os pobres e organizamos a vida coletiva. Essa mudança constitui uma conversão cultural inseparável da conversão espiritual, pois o modo como vemos os pobres revela o modo como compreendemos Deus. 

O Papa denuncia a ilusão de uma felicidade fundada na acumulação e no sucesso pessoal, alimentada por uma cultura que “descarta os outros sem sequer se aperceber, tolerando com indiferença que milhões morram de fome” (n. 11). Essa mentalidade enraíza-se em ideologias meritocráticas e individualistas, que reduzem a dignidade humana à produtividade e fazem crer que a pobreza é culpa pessoal. O resultado é uma cegueira ética, na qual os pobres se tornam invisíveis ou incômodos, e a desigualdade passa a ser aceita como preço inevitável do progresso. 

A mudança de mentalidade desejada por Leão XIV tem, portanto, amplas incidências culturais. Implica reconstruir as bases da convivência, substituindo a lógica da competição pela cultura da solidariedade. O Papa fala de uma “renovação cultural” que não se limita a políticas públicas, mas exige um novo ethos social e uma espiritualidade do cuidado e da partilha. Trata-se de educar o olhar e o coração para reconhecer o outro como “sacramento da presença de Cristo”. Essa é a grande revolução cultural do Evangelho, em que o pobre deixa de ser problema e se torna lugar teológico, rosto visível do Senhor. 

Os preconceitos que ainda resistem à conversão são denunciados com vigor: a meritocracia que glorifica os vencedores, o economicismo que mede o valor das pessoas pelo que produzem e o assistencialismo que infantiliza ou reduz os pobres à condição de objetos, negando-lhes protagonismo. A Dilexi te afirma que “os pobres não existem por acaso nem por destino amargo” (n. 14), mas são vítimas de estruturas injustas e de mentalidades que perpetuam a exclusão. Romper com esses preconceitos significa redescobrir a centralidade do Evangelho e da fraternidade humana. 

Na perspectiva bíblica e eclesial, os pobres não são destinatários passivos, mas sujeitos da evangelização. Leão XIV retoma o ensinamento de que Deus “escolhe os pobres” (Tg 2,5) e faz deles o coração da Igreja. A opção preferencial pelos pobres, nascida da compaixão divina, é expressão da própria lógica da encarnação. Cristo se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza (2Cor 8,9). Amar os pobres é, portanto, amar o próprio Cristo, não por filantropia, mas por fé. 

A cultura da solidariedade encontra raízes profundas na Tradição patrística. São João Crisóstomo ensina: “Queres honrar o Corpo de Cristo? Não o desprezes nos pobres”. Afirmando que a Eucaristia sem caridade é culto vazio. Santo Agostinho e São Basílio Magno lembram que partilhar com os pobres não é ato opcional, mas exigência de justiça: “Não é de tua propriedade o que dás ao pobre; é dele”. Esses testemunhos mostram que a fé cristã sempre formou cultura quando se encarnou em gestos de comunhão. 

A conversão de mentalidade é, antes de tudo, uma conversão do coração. A Dilexi te convida a Igreja e a sociedade a reencontrarem, na compaixão, a verdadeira cultura da vida. O amor aos pobres — longe de ser ideologia — é critério de autenticidade do Evangelho. Numa civilização que produz descartados, Leão XIV repropõe a “cultura do encontro”, inspirada no Papa Francisco, em que cada pessoa é reconhecida como irmã. A nova cultura começa quando deixamos de perguntar “quem é o meu próximo?” e passamos a ser, nós mesmos, próximos de todos. 

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