Dom Eduardo Koaik
Bispo emérito de Piracicaba
Toda virtude humana se engrandece praticada com amor-caridade. Ao contrário, sendo esvaziada dessa dimensão, não só se apequena como se anula. Aprendi essa lição com o apóstolo Paulo: “Sem amor-caridade, eu nada sou” (1Cor 13). É uma regra que não admite exceção. A caridade que dá esmola passando por cima da justiça não dando, por exemplo, salário justo, é hipocrisia, caricatura da caridade, além de desrespeito à dignidade da esmola.
A caridade que se mostra sensível à miséria alheia identifica-se com a misericórdia. A misericórdia abrange três momentos: ver a situação da miséria alheia, compadecer-se dela e socorrê-la. A compaixão é própria de quem vê com o coração a necessidade do outro e só é misericórdia quando se converte em socorro.
Quando Deus chamou Moisés para a missão de libertar o povo hebreu da escravidão do Egito assim se expressou: “Eu vi a miséria do meu povo. Ouvi seu clamor contra seus opressores, conheço os seus sofrimentos. Por isso desci para libertá-lo. Vai, eu te enviarei para fazer sair do Egito o meu povo” (Ex 3, 7-10). Na passagem do Evangelho que narra a multiplicação dos pães, Jesus “viu uma grande multidão e teve compaixão”. Perguntou aos discípulos que o acompanhavam quantos pães tinham. Eles responderam: cinco pães e dois peixes. Então Jesus mandou que todos se sentassem, pegou os cinco pães e dois peixes, pronunciou a bênção, partiu os pães e ia dando aos discípulos para que os distribuíssem. (cf. Mc. 6, 34-44)
Quem procura praticar a misericórdia, conforme ensina a Bíblia, não pode ficar apenas na “comoção do coração” mas deve chegar à ação. É bom insistir: misericórdia é o amor que vê a miséria alheia, procura senti-la como se fosse própria e se decide ajudar a remediá-la. Vale perguntar: quem não necessita de misericórdia? Em conseqüência: quem pode dispensar-se de ser misericordioso? Ser misericordioso como Jesus o foi há de ser sempre motivo de escândalo. É a incapacidade de aceitar esse amor que explica o “escândalo da cruz”.
Em sua Carta Encíclica “Deus, rico em misericórdia” (n.12), João Paulo II observa: “A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça, por si só, não basta e pode até levar à negação e ao aniquilamento de si própria, se não permitir à força mais profunda, que é o amor, plasmar a vida humana nas suas várias dimensões”. Esse pensamento do saudoso papa confirma quem sustenta que a opção preferencial pelos pobres, o empenho na luta pela justiça e a defesa dos direitos humanos, em certo sentido, vão além das exigências da justiça. São expressões da misericórdia.
O amor-caridade vê no próximo nada menos que um irmão. Essa visão evangélica ajuda a entender a justiça social que tem como específico o interesse do bem-comum acima do próprio interesse e empenha o cristão a cobrar do poder público o ressarcimento da divida social com o pobre: falta de trabalho, de moradia, de tudo que impeça o crescimento da concentração de renda e da desigualdade social. A opção preferencial pelos pobres, o empenho na luta pela justiça e a defesa dos direitos humanos, em certo sentido, vão além das exigências da justiça. São expressões da misericórdia.
Esse amor-caridade abrange tríplice dimensão: assistencial, promocional e libertadora. A caridade assistencial vê o pobre como indigente e procura atender de imediato suas necessidades básicas: “Estava com fome, com sede, sem roupa, doente. E quanto a vós: todas as vezes que fizerdes isso (socorrerdes) a um dos menores de meus irmãos é a mim que o fazeis” (Mt 25, 35ss). A caridade promocional vê o pobre como marginalizado, fora do progresso e do bem-estar da sociedade. Dedica-se a dar-lhe condições de “aprender a pescar”, “gerar renda”, integrar-se no processo do desenvolvimento e combater as causas que impedem esse desenvolvimento: o anseio de lucros e a sede do poder. Por fim, a caridade libertadora vê no pobre o explorado no seu trabalho. Procura despertar o cristão à solidariedade na luta pelos direitos dele.
A verdadeira caridade não pode identificar-se nos gestos de assistência paternalista. Para o cristão, a caridade é um amor desinteressado pela pessoa humana em razão da sua excelsa dignidade. É amor ao próximo enquanto imagem de Deus. Baseia-se na mais profunda fraternidade de todos os homens pela participação na vida de Deus. Ela tem uma função social enquanto complementa as exigências da justiça sem substituí-la; ela é o espírito que deve inspirar todos os gestos do nosso relacionamento com o próximo e particularmente os da justiça. Ela faz exigência de justiça e sua função nunca foi, segundo atesta Pio XI na “Quadragesimo anno”, n. 4, “a de estender um véu para encobrir a manifesta violação da justiça, violação não só tolerada mas, por vezes, até sancionada pelo poder público”. É por exigência da caridade que a Igreja testemunha sua presença ao lado dos pobres.