A Cristologia Paulina tem como ponto de partida uma experiência e não uma referência doutrinal. Quando Paulo passa a falar de Cristo não o faz por ter ouvido dizer a respeito dele. Mas porque o encontrou na experiência singular vivida na estrada de Damasco. A singularidade dessa experiência se comprova, por exemplo, no fato significativo do seu discípulo Lucas, nos Atos dos Apóstolos, narrá-lo por três vezes em At 9,1-22; 22,1-21; 26,1-23 com ecos fortes em várias passagens de suas cartas, como ICor 9,1; 15,8; IICor 4,6; Gl 1,12.15-16; 2,20; Fl 3,7-10.12.
Essa perspectiva não só toca profundamente a subjetividade do apóstolo como também reorienta toda a sua compreensão de mundo. Naturalmente, daí vem o seu ímpeto profético e a beleza sedutora do seu falar. Compreende-se, então, o que produz sua força querigmática na pregação, uma experiência pessoal de ter sido conquistado e de viver esta conquista com grande paixão. Ele diz: …continuo correndo para alcançá-lo, visto que eu mesmo fui alcançado pelo Cristo Jesus. Eu não julgo já tê-lo alcançado. Uma coisa, porém, faço: esquecendo o que fica para trás, lanço-me para o que está à frente.” (Fl 3,12b-13)
Em Gl 1,15ss, Paulo expõe o alcance e a significação da cristofania acontecida, proporcionando o entendimento da experiência por ele vivida. São três componentes fundamentais na explicitação deste acontecimento, à luz da consciência que Paulo elabora do fato. Há uma componente de caráter teológico, na medida em que Paulo aponta Deus como o responsável e, também, o primeiro agente da experiência pessoal por ele vivida. Bem assim, a nomeação de Cristo como seu Filho. Por isso o apóstolo sublinha que Deus o colocou à parte, o chamou, revelou-se nele. Compreende-se, conseqüentemente, que o acontecimento é pela força da graça de Deus e de seu beneplácito amoroso. Paulo acentua que o encontro e conhecimento de Cristo é fruto da ação luminosa de Deus, como Deus que na criação, recordando Gn 1,3, ordena e acontece a luz. O seu coração foi iluminado por essa luz criadora de Deus.
Um segundo componente é, naturalmente, de caráter cristológico. O episódio revela a identidade de Cristo Jesus como Filho de Deus. Este título não expressa toda a riqueza da compreensão que o apóstolo tem da identidade de Cristo. Ele compartilha o grande impacto que a pessoa de Cristo causou na sua pessoa, levando-o a considerar como lixo tudo o que precedentemente era de grande importância para ele: “Julgo que tudo é prejuízo diante deste bem supremo que é o conhecimento do Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele, perdi tudo e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo…” (Fl 3,8).
O terceiro componente é de caráter missionário com raízes nos componentes precedentes. Ele sabe que o seu chamado é em razão da missão de anunciar o Evangelho aos gentios (Rm 11,13). Assim, sua compreensão cristológica e teológica não tem um fim em si mesma. Mas, a razão é a missão recebida a partir do chamado que ele recebe. É central nesse componente missionário a consciência que ele tem e aprofunda de que Cristo Vivente é o verdadeiro mediador entre Deus e o homem. Para ele não é mais a lei. Existencialmente, ele experimenta a mediação de Cristo que modifica a sua vida e faz dele seu missionário. Embora não use o vocábulo discípulo, neste horizonte está a compreensão e a explicitação do que é ser e viver a experiência de discípulo.
Nesse contexto é que se levanta a pergunta se a experiência vivida por Paulo é uma experiência de chamado ou de conversão. Em que categoria se localiza o que ele compartilha como sendo sua experiência central diante de Cristo Jesus? Alguns exegetas indicam que é mais pertinente pensar a categoria chamado. Isso porque o próprio apóstolo não faz uso, nas explicitações que faz dessa experiência, do vocabulário de conversão (metanoein/ épistréfein), mas usa o vocabulário que se refere ao chamado (kalein/ áforizein, apokalúptein), sublinhando mais o aspecto teológico do evento do que aquele de caráter antropológico. Algo semelhante ao que viveram profetas como Isaías ou Jeremias. O próprio fato do acontecimento se localiza na estrada de Damasco, relembrando o que é próprio de uma vocação profética. É interessante, nesse sentido, observar a nuance em que o acontecimento de Damasco não identifica, imediatamente, a figura de Cristo com o Deus invisível e nem com um simples homem. Muitos pensam que Paulo interpretou o acontecimento nos parâmetros de categorias místico-apocalípticas, como se apresenta em Ezequiel 1. Uma ligação entre aspecto humano e divindade caracteriza a compreensão que Paulo dá ao entendimento desta cristofania. Nesse sentido são muitos elementos que podem ser explicitados para se configurar tal compreensão. No entanto, para se considerar a experiência como conversão se pode focalizar o elemento da descontinuidade na sua biografia. É a referência à passagem da sua condição de perseguidor àquela de evangelizador. Esta é, de fato, uma mudança muito grande. O que para ele era uma grande honra, a LEI, torna-se lixo.
É importante considerar que Paulo não se converte a uma doutrina ou a uma instituição. Mas ele se converte a uma pessoa, Cristo Jesus, estabelecendo com ele um relacionamento vivíssimo e totalizante. Tudo é Cristo: “Não sou eu mais que vivo, mas Cristo vive em mim” (Gl 2,20). A pessoa de Cristo se torna, pois, a verdadeira razão de ser e passa a ser o único e abrangente sentido de sua vida. Essa experiência pessoal se torna o substrato essencial de seu pensar e do seu agir. Não é uma referência para comprovar seus argumentos cristológicos ou outros quaisquer. A cristofania vivida por ele fundamenta e comprova o sentido profundo do seu apostolado.
A experiência de Paulo como conversão tem no seu reverso o chamado. Assim como o chamado tem no seu reverso a conversão. Isso significa dizer que o chamado inclui uma profunda experiência de conversão, dando sustento à condição de uma fecunda missão evangelizadora. Compreende-se que a experiência de conversão do apóstolo é conseqüência do seu chamado. O chamado exige intrinsecamente o processo de radical mudança. Só esta radical mudança como processo de conversão a Deus, constituindo o apóstolo, um apaixonado por ele, dá sustento e consistência à missão decorrente deste chamado. Distintas, a experiência do chamado e a experiência da conversão são inseparáveis. Só um chamado convertido sustenta a experiência da missão na grandeza do seu sentido e no alcance de sua significação.