A(des)graça de existir

As perguntas nascidas da dor – a experiência da perda e do mal no mundo – revelam que o coração do homem foi plasmado para a alegria, uma alegria sem sombras. É nos momentos de mais intenso sofrimento que emergem inevitáveis e pungentes as perguntas sobre o sentido da vida: por que tudo isso? Terá a vida sentido? Perguntas como essas não se poriam se não fosse o clamor da verdade a reclamar espaço dentro da experiência humana. É como disse o Papa João Paulo II na encíclica “Fé e Razão”: “basta observar a vida de todos os dias para constatar como dentro de cada um de nós se sente o tormento de algumas questões essenciais, e, ao mesmo tempo, se guarda na alma o esboço das respectivas respostas”.

Não haveria perguntas tão lancinantes se o anseio por uma vida plena não constituísse a verdade mais profunda de nosso ser, oculta sob as sombras de nossas dores. Houve pensadores que afirmaram ter o homem inventado a religião para não se confrontar com a verdade de uma existência, de si mesma, vazia de sentido e inevitavelmente destinada à dissolução. Ela nasceria do desejo teimoso e incapaz de assimilar a dura realidade de uma irremediável finitude. Estranho raciocínio esse que diante da sede conclui ser a água uma ilusão da fantasia premida pelo desejo. Se a existência humana aparece como persistente busca de vida, e de vida em plenitude, e se essa é uma busca inútil, porque destituída de sentido, então, é verdade, a existência é radicalmente angústia e impotência.

A conseqüência desse posicionamento é a negação da existência de Deus ou a crença em um Deus que teria criado o homem para se divertir com suas inúteis tentativas de ser feliz. A existência foi por alguns mitos pensada como castigo e culpa. Não é este o sentir da fé cristã ao rezar: “creio em Deus Pai, Criador do céu e da terra”. A mensagem do livro do Gênesis apresenta a existência do universo e do ser humano como uma dádiva de amor de um Deus desejoso de fazer outros partícipes de sua alegria de ser. A existência não é desgraça, é graça; não é culpa, é alegria de ser. A onipotência de Deus não é um poder que oprime, mas a onipotência de um amor capaz de tudo, até mesmo de morrer, para sustentar no coração de sua criatura predileta e esperança operante de uma vida à altura de sua inalienável dignidade. A encíclica “Fé e Razão”, retomando uma das orações da liturgia da sexta-feira santa, onde a Igreja reza: “Deus Eterno e Onipotente, criastes os homens para vos procurarem, de modo que só em vós descansa o seu coração”, afirma que “existe, portanto, um caminho que o homem, se quiser pode percorrer; o seu ponto de partida está na capacidade de a razão superar o contingente para se estender ao infinito” (nº 24). O problema é que o homem nem sempre o quer.

A verdade só se deixa alcançar pela razão quando nós a procuramos com a paixão de quem é capaz de tudo deixar para encontrá-la. Ela é o tesouro escondido e a pérola preciosa que todo homem, ainda que inconscientemente, tenta encontrar através de suas incansáveis buscas. Deus, porém, não deixou jamais o homem abandonado, só, no seu esforço por encontrá-lo. Nós bem o sabemos. Ele veio ao nosso encontro. Aceitar a revelação cristã é, pois, um autêntico ato da inteligência, que, ao reconhecer-se voltada para o infinito, alegra-se pela sua aparição, como dom e graça, resposta de Deus ao coração suplicante do homem, que, do fundo de sua radical pobreza de ser, aguarda uma possível revelação daquele que é pessoalmente o Ser Infinito, Verdade e Vida, origem e destino do Universo.

Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues

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