Dom Geraldo dos Reis Maia
Bispo de Araçuaí (MG)

 

De repente, do nada, surgiu à minha frente um anjo. Distraído, eu conversava com o padre que me acompanhava, assentados ao lado do presbitério, enquanto aguardávamos o início da coroação de Nossa Senhora de Fátima. Os singelos lábios do anjo balbuciaram palavras que eu não entendia bem, assustado que estava com aquela aparição repentina. O padre me disse: “Ela está agradecendo ao senhor por defender a natureza”. Abraçou-me com a ternura de um anjo e me disse novamente: “Muito obrigada por defender a natureza”. Aquela menina tinha a candura de um anjo e a voz meiga de um anjo. Tinha asas, vestes brancas… Sim, era um anjo. Nossa Senhora de Fátima enviou-me um anjo de apenas seis anos de idade para confirmar-me na missão de defender a natureza. 

Na véspera, tinha-se dado a aprovação, em segunda votação, na Câmara Municipal de Araçuaí, do Projeto de Lei que reduz a Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Lagoão, no município de Araçuaí. Vários embates haviam sido travados nesses últimos três meses. Entidades parceiras se uniram para defender a área total da APA, de acordo com sua criação, em 2007. O risco da diminuição desta APA poderia liberar a atividade minerária, que afetaria a sociobiodiversidade da região, que faz a transição entre o cerrado e a caatinga, com rica fauna e flora. Nesta área residem povos tradicionais, como os quilombolas, que podem sofrer impactos da mineração que se expande na região. 

A Diocese de Araçuaí não se calou diante dessa proposta de redução da APA, compreendendo as possíveis consequências desse Projeto de Lei. Vários documentos foram emitidos pela Diocese na defesa da área original da APA: carta pessoal enviada ao Prefeito Municipal; carta pessoal enviada aos Vereadores; nota pública; missa de abertura da Campanha da Fraternidade na Chapada do Lagoão; convocação de um dia de reflexão, jejum e oração na Diocese; pronunciamento na reunião com proprietários de áreas da Chapada, na Comunidade Santa Rita; pronunciamento na Audiência Pública; pronunciamento na Sessão da Câmara; Carta Pública aos Poderes do Município; duas cartas enviadas ao Presidente da Câmara, tendo sido lidas em Plenário. Nada disso serviu para sensibilizar a base governista na Câmara. A votação confirmou o placar previsto desde o início: 9 X 2 pela redução da APA Chapada do Lagoão. Respeitamos a opção feita pelos membros da Câmara Municipal, votando livremente segundo suas convicções pessoais e assumindo suas consequências, como é próprio no Estado Democrático de Direito. 

Os posicionamentos da Diocese não foram contra uma ou outra pessoa ou autoridade, mas foram sempre em favor da sociobiodiversidade presente na Área de Proteção Ambiental, contra a sanha de empresas que entram nos territórios e impactam a ecologia integral. Inspirados por argumentos éticos, evangélicos, lógicos e científicos, lutamos em favor desta ecologia integral: povos tradicionais, quilombolas, indígenas, fauna, flora, nascentes e tudo o que compõe o rico ecossistema presente nesta APA. Como Igreja, estamos sempre ao lado das pessoas mais fragilizadas e da natureza que geme silenciosamente suas perdas. Compreendemos que tudo está conectado na natureza e o que se faz contra parte deste ecossistema impacta a ecologia integral.  

Algumas pessoas nos acusam de ser contra a mineração e contra o progresso. Isso é Fake News, como tantas outras que espalham inescrupulosamente. Tanto somos favoráveis à mineração, que utilizamos tecnologias que provêm da mineração, até mesmo para redigir este artigo. Somos contrários, sim, a certas finalidades a que a mineração serve e a certos meios de extração da matéria prima. O lítio é utilizado na fabricação de baterias, especialmente de automóveis elétricos, aeronaves, drones, dentre outros. Quem se servirá desses automóveis elétricos? A quem servem as aeronaves, sendo que nem mesmo na região próxima são oferecidos voos comerciais e, quando o são, os preços são elevados? Os drones são empregados cada vez mais nas estratégias de guerras… Entendemos que os benefícios da atividade minerária se divorciam dos sacrifícios impostos à humanidade, especialmente a sociobiodiversidade localizada nas suas proximidades. Não podemos compactuar com a destruição das matas, das nascentes, dos rios, dos animais, das comunidades tradicionais que sempre viveram dependentes desses ecossistemas. 

Toda essa discussão veio num período muito providencial, a Campanha da Fraternidade. Para quem desconhece, devemos informar que esta Campanha da Fraternidade é realizada não somente no município ou na diocese de Araçuaí, mas em todo o território nacional, mobilizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Desde 1962, a cada ano é apresentado um tema a ser refletido no período da Quaresma. Neste ano, o tema escolhido foi “Fraternidade e Ecologia Integral” e o lema “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31). É oportuno adiantar que já foi escolhido o tema do próximo ano: “Fraternidade e Moradia” e o lema: “Ele veio morar entre nós” (Jo 1, 14). 

Desde o início do processo de votação do Projeto de Lei 02/2025, que previa a redução da APA, sabíamos que o placar estava definido, mas não podíamos nos calar como Igreja. Futuramente, vão perguntar: o que a Igreja de Araçuaí fez para barrar esse Projeto de Lei? Poderemos responder, com sensação do dever cumprido: foi feito tudo o que era possível para barrar esse projeto, como se poderá pesquisar no dossiê do arquivo diocesano. Infelizmente, como esperado, tal empenho não sensibilizou a consciência parlamentar majoritária. Mesmo assim, vencemos em termos de coerência com o Evangelho, com a Doutrina Social da Igreja e a Campanha da Fraternidade 2025. Ganhamos muito em termos de conscientização, formação de parcerias e mobilização popular. Bom recordar uma frase do Pe. Júlio Lancelotti: “Não luto para vencer. Luto para ser fiel”. E, no dia seguinte à votação, veio-me o anjo a confirmar a missão profética que assumimos neste Vale do Jequitinhonha: “Muito obrigada por defender a natureza”! 

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