Dom Leomar Brustolin
Arcebispo de Santa Maria (RS)
Há momentos em que o calendário não é apenas uma marcação de dias, mas um território simbólico. A virada do Ano Novo é um desses instantes raros em que o tempo parece suspenso: um ano se despede e outro se abre como uma página ainda intacta. Nesse limiar silencioso, o coração humano renova a pergunta mais antiga — para onde caminhamos?
A tradição cristã responde com uma afirmação que atravessa séculos: o tempo pertence a Deus. Ele é o Senhor da história, Aquele que guia, sustenta e acompanha cada etapa do caminho humano. Quando o relógio marca a passagem para o novo ano, celebramos mais do que o fechamento de um ciclo cronológico; celebramos a confiança de que nossa vida está ancorada em mãos seguras.
Convite entrar no ritmo de Deus
O Ano Novo, nessa perspectiva, não é apenas expectativa — é bênção. A liturgia da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, celebrada em 1º de janeiro, proclama sobre o povo a antiga benção sacerdotal: “O Senhor te abençoe e te guarde; o Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te conceda a paz”. É uma das palavras mais antigas da tradição bíblica, e justamente por isso, das mais atuais. Ela recorda que o primeiro dia do ano não é um salto no desconhecido, mas a certeza de que Deus caminha conosco.
Em uma cultura marcada pela velocidade e pela ansiedade, o Ano Novo costuma ser vivido como correria, ruído e fogo de artifício. Mas há uma dimensão mais profunda que merece ser recuperada. O tempo não é um adversário a ser vencido nem uma corrida contra o relógio. O tempo é dom — espaço onde Deus nos fala, nos provoca, nos desperta e nos cura. O Ano Novo, então, é menos uma fuga e mais um convite: entrar no ritmo de Deus, que não é o da pressa, mas o da fidelidade.
O senhor dos recomeços
Ao olhar o ano que termina, muitos percebem feridas, perdas, promessas não cumpridas, medos que se arrastaram. Mas é justamente nesse ponto que a fé cristã se revela surpreendente: nada está perdido. O Deus que entrou na história como criança em Belém continua a entrar nos pequenos gestos de cada dia. Ele é o Deus dos recomeços, o Deus que transforma fracassos em sementes e esperas em horizontes. A história — pessoal ou coletiva — nunca está fechada enquanto Deus está nela.
Por isso, o Ano Novo traz consigo uma responsabilidade espiritual: escolher como viver o tempo que se abre. O cristão é chamado a atravessar os dias com uma esperança ativa, comprometida com o bem comum, com a justiça e com a paz. É assim que o tempo se torna fecundo; é assim que o cotidiano ganha densidade e significado. Deus não nos convida a apenas esperar um ano melhor, mas a construir, com Ele, um ano mais humano.
A bênção que coroou o primeiro dia do ano continua ecoando quando os fogos se apagam e as festas se dispersam. Ela acompanha quem retorna ao trabalho, quem enfrenta desafios, quem recomeça silenciosamente. É uma bênção que se mistura com o suor, o esforço, a ternura, o perdão e a alegria possível de cada homem e mulher.
O Ano Novo é, afinal, esse grande simbolismo: Deus continua acreditando na humanidade. Ele continua abrindo tempo, criando oportunidades, oferecendo graça. Ele continua conduzindo a história, mesmo quando ela parece dispersa ou fragmentada. E ao entregar-nos mais um ano, Ele sussurra — quase como em Belém — que não caminhamos sós.
Que este Ano Novo seja vivido assim: com os pés firmes na terra e o coração atento ao Deus que faz novas todas as coisas. Que o tempo seja habitado com sabedoria. E que a história, que tantas vezes parece pesada, seja iluminada pela certeza de que o Senhor do tempo a conduz com amor.
Sim, o Ano Novo é mais do que um calendário: é um dom.
E esse dom chega acompanhado da bênção de Deus — princípio, centro e plenitude de todos os nossos dias.
