Apontamentos sobre a situação atual da fome e possíveis soluções

Para o dia mundial da alimentação

  1. Após trinta anos de relativa estabilidade nos preços dos alimentos, fomos surpreendidos por notícias sobre a falta de alimentos no mundo. De fato, os preços subiram enormemente nos dois últimos anos, e os analistas apontam diversos fatores que se somaram para gerar esse aumento. Embora agravada por fatores climáticos localizados, trata-se indiscutivelmente de uma crise provocada pelo mercado e não por más condições do clima, guerras ou doenças, que sempre foram as grandes causadoras da fome em grande escala.
  2. Diante das declarações de José Maria Sumpsi, da FAO, afirmando que se trata de um problema de oferta e de demanda, devido ao aumento do consumo em países emergentes como Índia, China ou Brasil, há de se lembrar que nunca antes se havia produzido tamanha quantidade de alimentos no mundo. Hoje se produz três vezes mais que nos anos sessenta, enquanto a população mundial somente duplicou desde então.
  3. Não há uma crise de produção de alimentos e sim uma impossibilidade de acesso aos mesmos por parte de amplas populações que não podem pagar os preços atuais. A solução não pode ser mais livre comércio porque, como se tem demonstrado, isso implica em mais fome e menor acesso aos alimentos. O mercado não pode resolver o problema dos alimentos. Como é um problema político, exigem-se medidas políticas.
  4. A atual crise do preço dos alimentos é reveladora desse limite do mercado. Basta pensar, por exemplo, no consumo de carnes e o desgaste que ele provoca ao transformar florestas e vegetação do cerrado em pastagens, e por exigir enormes plantações de soja e milho (que entre outros danos ecológicos consomem grande quantidade de água na irrigação) para alimentar animais e aves criados em regime de reclusão. Como, na lógica do mercado, só se reduz a demanda pela elevação dos preços – e não pela mudança de hábitos alimentares, como uma dieta menos devastadora dos recursos naturais – sua única saída é aumentar a produção, ainda que isso implique antecipar a crise ecológica que já está no horizonte.
  5. Visto isso, chega-se a conclusão que a atual crise de preços de alimentos está pedindo às pessoas de boa-vontade uma séria e alentada reflexão sobre o sistema de produção e consumo baseado no mercado. Neste contexto, faz-se necessário um pensamento rigoroso e crítico, que não se contente em propor correções ao sistema de mercado, mas busque alternativas econômicas viáveis para a população.
  6. Para contribuir neste debate, a Santa Sé, por meio do Conselho Pontifício Justiça e Paz, em nota publicada no dia 4 de junho de 2008 afirma que a atual crise alimentar mundial poderá, no longo prazo, supor uma oportunidade de crescimento para os países pobres se a comunidade internacional ajudá-los a promover seu desenvolvimento agrícola.
  7. Segundo a nota, este aumento dos preços foi provocado por vários fatores, uns de tipo conjuntural e outros estruturais. Entre os fatores conjunturais, destaca a escassez de colheitas provocada pela climatologia adversa em países como a China, Austrália e Vietnã, ao que é preciso acrescentar a crise energética, que não só encareceu o transporte, mas fez derivar os cultivos à produção de agrocombustíveis ao invés de ao consumo alimentício.
  8. Outro fator, segundo o Conselho pontifício, é “o comportamento dos investidores internacionais, que frente à crise do mercado financeiro, estão investindo neste setor e especulando com o futuro aumento dos preços”.
  9. Entre os fatores estruturais, ao aumento da demanda se une a diminuição da oferta, provocada, segundo o Conselho Pontifício, pela política de subsídios à produção agrícola dos países ricos. Esta política provocou que baixassem os preços durante décadas, e isso fez com o que os países pobres deixassem de produzir bens agrícolas próprios e dependessem das importações. “O resultado é que a maior parte dos países pobres se converteu em importador de comida, com graves conseqüências para sua capacidade produtiva e de inovação no setor agrícola”.
  10. Esta crise alimentar resultante “empobrece os setores mais fracos da população mundial, especialmente as áreas urbanas que gastam uma parte importante de seus recursos na compra de alimentos”. Se a situação não melhorar, segundo o Conselho Pontifício Justiça e Paz, até o ano 2015 poderá haver 1,2 bilhões de famintos crônicos.
  11. O Conselho Justiça e Paz afirma que sua missão não é dar soluções técnicas, mas “exortar os fiéis leigos e os homens e mulheres de boa vontade a buscar soluções adequadas à crise, em nome do dever de solidariedade entre os membros da única família humana”.
  12. Para o Conselho Pontifício, a comunidade internacional não deveria responder só com medidas a curto prazo, com ajudas de emergência, mas com ajudas no longo prazo, que levem a superar as desigualdades estruturais.
  13. “De fato, o aumento dos preços dos alimentos poderia inclusive transformar-se em uma oportunidade de crescimento para os países pobres do mundo, sempre que a comunidade internacional e os governos nacionais se dediquem a promover eficazmente o desenvolvimento agrícola dos países mais pobres, promovendo sua capacidade de sustentar a população sem ter de depender excessivamente da ajuda exterior”.
  14. Este desenvolvimento deveria unir-se também a uma Reforma Agrária nestes países, que permita aos camponeses chegarem à propriedade das terras. Outra das propostas é a de controlar a produção dos agrocombustíveis, de maneira que não se destinem recursos alimentares necessários para a população a esse tipo de energia.
  15. As conclusões da Conferência da FAO ocorrido em Roma, neste ano não indicam uma mudança de tendência nas políticas que vêm sendo aplicadas nos últimos anos e que têm conduzido à situação de crise atual. O monopólio de determinadas corporações multinacionais de cada um dos trechos da cadeia de produção de alimentos, desde as sementes passando pelos fertilizantes até a comercialização e distribuição do que comemos, é algo que não se tratou na Conferência.
  16. Os resultados da Conferência da FAO refletem o consenso alcançado entre a ONU, o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) para manter políticas econômicas e comerciais de dependência Sul-Norte e de apoio às multinacionais da agroalimentação. As recomendações lançadas a favor de uma maior abertura dos mercados no Sul, de subsidiar as importações de alimentos a partir da ajuda ao desenvolvimento e a aposta por uma nova revolução verde apontam nesta direção.
  17. Aqueles que trabalham e cultivam a terra, nas mãos de quem deveria estar nossa alimentação, os camponeses e as camponesas, foram excluídos do debate.
  18. As declarações de boas intenções e as promessas de milhões de Euros para acabar com a fome no mundo realizadas por vários governantes não vão pôr fim às causas estruturais que têm gerado essa crise. Além disso, as propostas realizadas pelo Secretário Geral da ONU, Ban Ki-moon, de aumentar em 50% a produção de alimentos e rechaçar as limitações impostas à exportação por parte de alguns países afetados parecem reforçar mais as causas da crise do que conduzir a saídas reais que garantam a segurança alimentar da maioria das populações no Sul.
  19. Quem está, de fato, preocupado em solucionar a questão da fome não pode se iludir com os paliativos propostos nessas reuniões de cúpula e nem imaginar que a humanidade pode se ver livre do fantasma da fome dentro dos marcos do capitalismo. Basta atentar para o fato de que no país capitalista mais rico do mundo, o governo, a fim de garantir renda aos produtores, subsidia os agricultores que deixam de cultivar parte de suas terras. Pois, mesmo com esse enorme potencial de produção alimentar, graves deficiências nutricionais afetam porcentagem significativa de sua população e grandes filas de pessoas com fome formam-se diariamente nos “sopões” da caridade.
  20. Acabar com a situação de crise implica pôr um fim no modelo de agricultura e de alimentação atual que coloca os interesses econômicos de grandes multinacionais acima das necessidades alimentares de milhões de pessoas. É necessário abordar as causas estruturais: as políticas neoliberais que vêm sendo aplicadas de forma sistemática nos últimos 30 anos, promovidas pelo BM, FMI e OMC, com os Estados Unidos e a União Européia à frente. Políticas que significam liberalização econômica em escala global, abertura sem freio dos mercados, privatização de terras dedicadas ao abastecimento local e sua reconversão em monoculturas de exportação, conduzindo-nos à grave situação de insegurança alimentar atual
  21. A saída para a crise passa por regular e controlar o mercado e o comércio internacional; reconstruir as economias nacionais; devolver o controle da produção de alimentos às famílias camponesas e garantir seu acesso livre à terra, às sementes, à água; tirar a agricultura dos tratados de livre comércio e da OMC; e pôr um fim na especulação com a fome. Não é admissível que os alimentos que os alimentos tenham subido 50% só neste ano. Alimento não é mercadoria, é dom de Deus e direito de todos e de todas.

Dom Guilherme Antônio Werlang

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