Bispo brasileiro de Pemba, Moçambique, denuncia ataques em Cabo Delgado

A Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Missionária e Cooperação Intereclesial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) teve acesso a uma entrevista exclusiva do bispo de Pemba, em Moçambique, dom Luiz Fernando Lisboa, à rádio Sol Mansi, da diocese de Bafatá – radio da Igreja católica da Guiné-Bissau.

Foto: DW/R. Belicanta

No bate papo com o jornalista Iaia Quade, dom Luiz descreve a situação de guerra que a população de Cabo Delgado, região norte de Moçambique, tem vivido com os ataques armados que vem ocorrendo há alguns anos, sobretudo nos distritos do norte e centro da província.

Durante a entrevista transmitida na manhã do último domingo, dia 25 de maio, dom Luiz destaca ainda o sofrimento que o povo das comunidades de Cabo Delgado está passando desde outubro de 2017, quando começaram os primeiros ataques de homens armados, o que tem deixado um rastro de dor, destruição e luto.

“As pessoas vivem num clima de medo, de pavor por causa dessa situação toda que está a acontecer. Nos últimos meses, esses ataques a vilas provocou um deslocamento interno muito forte. Nesse momento nós já temos mais de 200 mil deslocados internos dentro da província de cabo Delgado”, disse o bispo ao jornalista.

Dom Luiz ressaltou que o apelo do Papa Francisco na mensagem Urbi et Orbi (à cidade de Roma e ao mundo), no Domingo de Páscoa, 12 de abril, recordando as guerras em andamento no mundo foi extremamente positiva porque escancarou a crise do país que tem sofrido com a lei do silêncio.

“O Papa ter falado colocou-nos no mapa do mundo a crise que Moçambique está a viver na nossa província de Cabo Delgado. Então, o Papa é um líder mundial que tem uma voz muito forte. Aquilo que ele diz é respeitado e o fato dele ter falado nos ajudou muito. Tanto é que internamente o governo reforçou as forças de defesa, de segurança para ir ao encontro desses guerrilheiros, desses homens armados que tem feito sofrer muito a população. Já morreram mais de mil pessoas nessa guerra insana e temos mais de 200 mil deslocados internos”, disse.

Leia a transcrição da entrevista na íntegra:

Iaia Quade: vamos ouvir primeiro as palavras de dom Luiz a partir de Moçambique.

Dom Pedro Carlos Zilli: Em primeiro lugar, eu quero agradecer essa oportunidade de falar com os ouvintes da rádio Sol Mansi. Dom Pedro Zilli e eu, Luiz Fernando, somos dois bispos brasileiros na África. Dom Pedro já há bastante tempo em Bafatá e eu cá no Norte, em Moçambique e há sete anos como bispo.

Foto: DW/Private

Temos acompanhado que a sua diocese de Pemba tem passado momentos bem difíceis. O que acontece, afinal?

O que tem acontecido aqui conosco: nós de dois anos e meio pra cá temos sofrido ataques de homens armados e que acabou virando uma verdadeira guerra. Inicialmente era um grupo que não tinha rosto.

Começaram a atacar as aldeias mais distantes em alguns distritos nossos. Depois começaram a matar pessoas, a queimar casas. Depois começaram a atacar nas estradas, carros, transporte público e a matar pessoas e, ultimamente, já nesse ano começaram a atacar as vilas, onde está a maior concentração de pessoas. Então, tudo isso tem deixado um rastro de morte, um rastro de destruição muito grande.

As pessoas vivem num clima de medo, de pavor por causa dessa situação toda que está a acontecer. Nos últimos meses, esses ataques a vilas provocou um deslocamento interno muito forte. Nesse momento nós já temos mais de 200 mil deslocados internos dentro da província de cabo Delgado. Inicialmente, as pessoas começaram a sair para ir às vilas. Como agora atacam as vilas, as pessoas estão saindo de uma cidade pra outra, de um distrito pro outro e vindo para a capital. Então, nós temos na capital e em outros distritos famílias acolhendo famílias. Então, as casas estão lotadas com 15, 20, 25 pessoas e, nesse tempo da pandemia, que é muito difícil que se pede isolamento, nós estamos no segundo mês já de estado de emergência que deveríamos ter um isolamento, mas é muito difícil fazer porque as famílias estão lotadas. Aqueles que não conseguiram sair das aldeias por algum motivo acabam dormindo no mato por causa do medo. Então, nós temos passado por uma dificuldade muito grande, um sofrimento muito grande de toda a população.

A população já é tão pobre, tem tão pouco e esse pouco que tem tá sendo destruído por esses grupos. Eu disse inicialmente que não tinham rosto. Desde o início do ano eles tem se apresentado como estado islâmico. Então, é uma situação bem difícil pro nosso povo, uma situação muito difícil pra nossa igreja. Então, nós precisamos mesmo é de muita oração porque temos sofrido muito com tudo que está a acontecer.

No dia da Páscoa, o Papa Francisco falou sobre a crise humanitária em Cabo Delgado. Qual foi a repercussão dessa citação do Papa?

É verdade. No dia da Páscoa ao final da missa quando o papa fez a benção Urbi et Orbi, que é sobre a cidade de Roma e sobre o mundo. Ele falou sobre a crise que o mundo está vivendo com essa pandemia, mas falou também de várias crises de guerra, de situações difíceis para todo mundo e citou concretamente a crise humanitária em Cabo Delgado.

A minha diocese, a diocese de Pemba, ela abrange toda a província de Cabo Delgado e o fato de o Papa ter falado escancarou a nossa crise e, porque nós vivíamos aqui dentro do país uma certa lei do secretismo (silêncio), não se podia falar, os jornalistas não tinham liberdade pra falar da nossa situação aqui em Cabo Delgado. Vários jornalistas foram presos. Temos um jornalista desaparecido há mais de um mês porque estava trabalhando nessa região. Então, o fato de o Papa ter falado, isso escancarou, fez com que internamente se falasse mais da crise que estamos a viver e também despertou a atenção do mundo.

Pra terem uma ideia, a Igreja sempre falava sozinha, sempre nós falamos sobre a crise daqui, denunciamos, pedimos apoio, ajuda e, por isso, somos até de certa forma perseguidos e agora depois que o Papa falou eu tenho dado muitas entrevistas pra imprensa da Alemanha, da Itália, da Espanha, do Brasil, de vários lugares, África do sul, que tem se interessado pela situação de Cabo Delgado. Então, o Papa ter falado colocou-nos no mapa do mundo a crise que Moçambique está a viver na nossa província de Cabo Delgado. Então, o papa é um líder mundial, tem uma voz muito forte. Aquilo que ele diz é respeitado e o fato de ele ter falado nos ajudou muito. Tanto é que internamente o governo reforçou as forças de defesa de segurança para ir ao encontro desses guerrilheiros, desses homens armados que tem feito sofrer muito a população. Já morreram mais de mil pessoas nessa guerra insana e temos mais de 200 mil deslocados internos.

Como nós aqui da Guiné-Bissau podemos ajudar?

A maneira mais concreta de ajudar é rezando por nós, pelo nosso povo porque a oração tem uma força muito grande e nós precisamos muito da oração e da comunhão dos irmãos, das irmãs para que como Igreja saiba como ajudar. A Cáritas tem ajudado muito, nossa Cáritas diocesana, desde o início da crise. Nós tivemos aqui, eu ia esquecendo de dizer, há um ano atrás o Ciclone Kenneth*, que também destruiu muitas casas, deslocou muita gente. Então, juntando o ciclone e esses ataques armados nós temos esse número assustador de deslocados. Não há comida que chegue porque ninguém conseguiu fazer machamba (plantar e colher) esse ano, sobretudo nesses nove distritos onde tem os ataques. Então, nós já estamos vendo aqui outro fenômeno da fome, que já é um problema aqui, mas esses dois anos muito pior e agora nesses dias tem tomado uma proporção muito grande. Nós temos trabalhado muito no sentido de levar alimentação, temos trabalhado com muitas organizações internacionais que têm nos apoiado pra atender a esses deslocados. Pra ter uma ideia, em Pemba tem milhares de deslocados, no distrito vizinho aqui nesses últimos dias chegaram 16 mil deslocados, é muita gente. Então, nós precisamos mesmo de oração e precisamos de solidariedade de todas as partes, venha de onde vier né, para que nós possamos atender essa população que tem sofrido muito.

Que mensagem o senhor bispo gostaria de deixar para aqueles que nos ouvem?

Eu gostaria de aproveitar pra deixar uma mensagem que nós somos a mesma Igreja, a única Igreja de Cristo e nessa Igreja todos somos missão. Então, que cada um de nós, cada um daqueles que me ouvem possam assumir verdadeiramente seu batismo e possa ser missionário onde quer que seja, na sua família, no seu trabalho, na escola, em qualquer ambiente que for na comunidade, nas várias que Deus muitas vezes nos coloca, que cada um de nós possa dar seu testemunho e possa ser missionário, missionária e nós, como Igrejas particulares, Bafatá e Pemba rezemos uns pelos outros. Um grande abraço ao meu irmão dom Pedro Zilli, um grande abraço a todos os que trabalham nessa rádio da diocese, um grande abraço a todos os ouvintes e as ouvintes e que Deus abençoe a cada um, cada uma, um grande abraço.

*Segundo a agência France Presse, o ciclone destruiu aproximadamente 3.300 casas e deixou cerca de 18 mil pessoas refugiadas em abrigos de emergência. Autoridades locais confirmaram 5 mortes.

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