Completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo

Dom José Francisco Rezende Dias
Arcebispo de Niterói

 

Nada do que disserem, mais tarde, será capaz de explicar ou atenuar a nossa atual incapacidade de entender o que anda acontecendo na sociedade humana. Tivemos uma Quaresma bastante sofrida. Sofrida demais! Todo o sofrimento e morte, divulgados pelos noticiários, por causa do coronavírus, revelam a tristeza dessa pandemia e o sofrimento que atingiu a todos nós, obrigados ao isolamento social. Tudo o que vimos e ouvimos, nesta Quaresma, não nos deixa dúvida do quanto ainda é preciso completar, em nossa própria carne, o que falta à Paixão do Senhor (Cl 1,24). O que torna tudo claro em nossa vida é pensar “que os sofrimentos do momento presente nem se comparam com a glória futura que será revelada em nós” (Rm 8,18).

No entanto, como é intrincado e difícil entender e aceitar o mistério do sofrimento humano! Dentro de nossas casas, celebramos o Amor Maior na Semana Santa. Neste momento, os sentimentos que invadem os nossos corações são diversos: de um lado, sentimentos de solidão, incerteza e impotência, por outro, de comunhão fraterna, de solidariedade e confiança em Deus.

Um rabino, que perdeu um filho muito cedo, escreveu um livro sobre o sofrimento humano. Ele afirma que a maior limitação de sua vida, diante do sofrimento que se abateu sobre ele com a perda do filho, foi o fato de não ser cristão. Como seria mais simples, dizia ele, acreditar no que os cristãos acreditam: que há um Deus ressuscitado, e que Ele – só Ele – pode responder à inquietação da alma, quando a alma não for mais capaz de fazer isso, sozinha.

O rabino, homem de uma intensa vida interior, capaz de traduzir em palavras o que vai na alma das pessoas, não recebeu a graça das graças: a graça de crer em Jesus, de receber o dom do Batismo, que frutifica na vida onde mais a vida exige desse fruto. A nós, essa graça nos foi dada. Por nada deste mundo, podemos abrir mão dela.

Onde o pecado se faz presente, a graça se manifesta ainda maior (Rm 5,20). Enquanto o sofrimento e a morte rondam nossas vidas, percebemos, por todo lado, sinais da Páscoa, que celebramos em família, dentro de nossas casas. O Cristo, vitorioso da morte, nunca irá abandonar os seus. Podemos recordar alguns sinais da vida pascal, que estamos testemunhando: o cuidado dos profissionais da saúde para amenizar o sofrimento e salvar a vida dos enfermos; a dedicação daqueles que trabalham nos serviços essenciais, correndo o risco de serem infectados; a solidariedade fraterna daqueles que oferecem a comida aos mais pobres e aos irmãos, em situação de rua; o ficar em casa em obediência às orientações sanitárias; o conviver em família, com os conflitos que daí podem surgir, exigindo muitas vezes o perdão e a reconciliação; o carinho e a paciência com os idosos, na sua dificuldade de entender o momento que vivemos; a oração e a comunhão na dor com aqueles que perderam seus entes queridos nessa pandemia. Tantos outros sinais de vida podem ser enumerados.

Porém, em meio a esta situação dramática que estamos vivendo, não podemos nos esquecer do grande sinal de antecipação da Páscoa, que foi realizado pelo Papa Francisco, em sua emocionante oração pela humanidade, pedindo a Deus o fim da pandemia. Através do seu testemunho de comunhão fraterna, da sua oração de abandono e confiança em Deus, o Papa Francisco, com sua serenidade confiante, comoveu a todos nós e ao mundo, em sua comunhão com a dor da humanidade. O seu exemplo é um chamado para a construção de um mundo novo, fundamentado nos valores do Evangelho, no respeito e na defesa da vida, na convivência fraterna em nossa casa comum, e no amor para com Deus, que vence o mal e a morte.

Acreditar que a morte nunca terá a última palavra é o primeiro indício de que a Vida do Ressuscitado vive em nossa vida e que, por uma sublime transfusão, o seu Sangue derramado corre nas veias de nossa alma e, a partir de nós, vivifica o mundo.

Nada do que disserem, mais tarde, será capaz de explicar ou atenuar a nossa incapacidade de entender o que anda acontecendo na sociedade humana. Estamos por demais perto dos acontecimentos. Não se consegue ler uma página quando o nariz, como se diz, está colado ao papel. O excesso de proximidade e de distância impede a visão das coisas. No entanto, é Páscoa. E a luz que já nos chega, resplandecente do túmulo vazio, começa a inundar nossa alma de todas as certezas de que precisamos para suportar tudo o que vivemos e sublimar o que não conseguimos suportar. Pois quanto mais escura for a madrugada, maior é a aurora que ela carrega em seu bojo (Dom Hélder Câmara).

De todo o meu coração, eu lhes desejo uma santa Páscoa, a Páscoa que o Senhor, neste ano, quis ardentemente comer conosco em família, dentro de nossas casas. Que a luz de Cristo resplandecente ilumine as trevas de nosso coração e de nosso mundo!

Feliz Páscoa!

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