Contexto atual e seus impactos na sociedade e na fé cristã 

Dom João Santos Cardoso 
Arcebispo de Natal (RN)

 

Vivemos em um contexto social, cultural e antropológico complexo, instável e ambivalente. Um olhar crítico sobre a realidade nos mostra que não caminhamos para o apocalipse, mas também não vivemos em tempos ideais. Temos a sensação de estar vivendo um momento de “interregno”, marcado pela incerteza e instabilidade, à semelhança do que Zigmunt Bauman chama de “modernidade líquida” para ilustrar a natureza fluida e em constante mudança da sociedade contemporânea, na qual as instituições e convenções, outrora estáveis e sólidas, tornam-se efêmeras e voláteis. Nesse vácuo, as ideologias de direita e de esquerda disputam as narrativas e geram confusão e dispersão, com noções reducionistas da sexualidade, do matrimônio, da família e da pessoa humana. 

O Documento de Aparecida (CELAM, 2007, n. 33-100), em seu diagnóstico da realidade atual, afirma que vivemos não apenas uma época de mudanças, mas uma mudança de época. Vivemos uma realidade marcada por grandes transformações de alcance global que afetam não somente o mundo inteiro, mas impactam profundamente nossas vidas e nosso modo de pensar. Tais mudanças alteram os critérios de compreensão e os valores mais profundos a partir dos quais identidades são afirmadas e ações e relações são estabelecidas. Essas mudanças engendram tendências desafiadoras, como o individualismo, o fundamentalismo, o relativismo, o laicismo militante, o secularismo e diversas formas de unilateralismo (CNBB, Doc. 102, n. 19). 

O fenômeno da secularização e o secularismo envolvem ideias relacionadas ao processo histórico que deu origem à modernidade, que levou a termo a dessacralização do mundo e a sua autonomia em relação à religião. Enquanto fenômeno complexo com muitas facetas, a secularização não pode ser confundida apenas como rejeição das formas religiosas tradicionais, uma vez que a sua versão mais radical inclui a recusa a qualquer princípio absoluto de caráter metafísico que possa justificar a realidade.  

Em sua narrativa, a modernidade tende a transformar os processos históricos em eventos secularistas, buscando eliminar da base constitutiva das sociedades ocidentais sua memória cristã e qualquer referência a valores religiosos apoiados na força do Sagrado e, em última instância, a recusa do fundamento, consequência última do nihilismo, ou seja, da afirmação de Nietzsche da “morte de Deus”. Ao recusar os fundamentos, o secularismo conduz à superação da própria modernidade. 

O Papa Bento XVI abordou as consequências da secularização e do secularismo em seu discurso à Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para a Cultura, em 2008. Ele destaca a complexidade das mudanças culturais e religiosas contemporâneas, nas quais a secularização leva ao secularismo e coloca à prova a vida cristã, tanto dos fiéis quanto de seus pastores. Também, descreve a secularização como um delineamento do mundo e da humanidade sem referência à transcendência, no qual Deus se tornou total ou parcialmente ausente da existência e da consciência do ser humano. 

Esses fenômenos não são apenas conceitos abstratos. Eles têm impacto no modo de vida das pessoas. A secularização conduz ao secularismo e agrava a crise antropológica ao negar a transcendência e reduzir a pessoa humana à realidade imanente, como a economia e a biologia. Isso leva à indiferença religiosa e ao crescimento do relativismo, que alimenta o nihilismo contemporâneo que pode surgir na ausência de uma base espiritual sólida. Em reação, o fundamentalismo ganha adeptos e, por acreditar ser detentor da verdade absoluta, tende a ser intolerante, sectário, propenso a usar da violência contra seu opositor visto como inimigo. Esses fenômenos não se limitam apenas à sociedade em geral, mas também afetam a própria Igreja, desafiando a fé cristã e influenciando o estilo de vida e o comportamento dos fiéis. 

No contexto de ambivalência e acirramento das disputas ideológicas, o cristão é chamado a dar sempre de novo razão de sua esperança, bem como a apresentar, com renovado ardor, novos métodos e novas expressões, a novidade da pessoa de Cristo como resposta à busca de tantas pessoas pelo sentido da vida. E, no cotidiano, somos desafiados, sem perder nossa própria identidade, a desenvolver a capacidade de adaptabilidade e resiliência para lidar com as constantes mudanças. 

 

 

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