“Corrompeu-se o teu povo” (Ex 32, 7)

Dom José Ionilton Lisboa de Oliveira
Bispo da Prelazia de Itacoatiara – Amazonas

 

Na primeira leitura da liturgia da Palavra de quinta-feira da 4ºª semana da quaresma, tivemos a leitura do livro do Êxodo, quando Deus fala a Moisés: “Vai, desce, pois corrompeu-se o teu povo (32, 7), versículo que dá nome a este artigo.

Olhando o dicionário, encontramos que corromper é verbo transitivo direto e pronominal. É tornar(-se) apodrecido ou estragado (falando de algo concreto); deteriorar(-se). E dar como exemplo: “A ferrugem corrompe o ferro”. Também, diz que corromper é verbo transitivo direto e pronominal: perverter(-se) moral ou fisicamente. E coloca como exemplo: “os hábitos desregrados corrompem os jovens” (https://www.google.com/significado de corromper). Sintetizando podemos dizer, então, que corromper é apodrecer, estragar, deteriorar, perverter. O dicionário fala de corromper coisas e pessoas. Neste artigo vou buscar refletir sobre corromper pessoas e instituições da sociedade e da Igreja.

A Palavra de Deus

Além do texto do Êxodo que nos dá o título do artigo, a Palavra de Deus nos ajuda, em muitos textos, a entender que a corrupção não faz parte do plano de Deus para nós.

Desde o primeiro testamento, Deus se revela como um Deus que nos convida a parar de fazer o mal, a aprender a fazer o bem, a buscar o direito, a socorrer o oprimido, fazer justiça ao órfão e defender a causa da viúva (cfr. Is 1,16-17). Os Profetas bíblicos são duros com aqueles que deviam cuidar do povo e pelo contrário usam, exploram e abandonam o povo. O Profeta Isaías diz: “Ao meu povo é um moleque quem governa… Povo meu, os que te conduzem te desviam e embaralham o caminho dos teus passos… O Senhor faz esta denúncia contra os anciãos e chefes do povo: … ‘O que foi roubado dos pobres está em vossas casas! Por que esmagar o meu povo? Por que triturais o rosto dos pobres?’” (3, 12.14-15). O profeta denuncia o que é roubado dos pobres. Roubar dos pobres é ato de corrupção, é desvio de recurso. Diz ainda o profeta que o pobre é triturado, esmagado, prejudicado. A corrupção produz sempre isto, prejuízo para o povo: Serviços essenciais deixam de funcionar por falta de recursos, programas sociais são suspensos e diminuídos, leis contra o povo são aprovadas (basta lembrar a lei do congelamento por 20 anos dos recursos para a área social de 2016 e a reforma trabalhista e da previdência de 2019).

A corrupção foi denunciada por Amós. Ouçamos o Profeta: “Escutai, os que esmagais o pobre, que excluís os humilhados do país… Quando vai passar o sábado, para expormos o trigo, diminuir as medidas, aumentar o peso, utilizar balanças mentirosas, comprar o fraco por dinheiro, o indigente por um par de sandálias, para negociarmos até o farelo do trigo… Jamais me esquecerei de tudo o que esta gente faz” (8, 4.5b-6.7b). A corrupção econômica (diminuir medidas, aumentar peso, balanças mentirosas) e a corrupção eleitoral, a compra de votos na época das eleições (comprar o fraco por dinheiro e o indigente com sandálias), que apesar da Lei 9840/99, ainda persiste em nosso país, falsificando o resultando das eleições.

Jesus nos pede que sejamos bons administradores dos dons recebidos (cfr. Mt 25, 14-30). Ele faz uma crítica a quem corrompe o verdadeiro sentido das práticas religiosas (cfr. Mt 6, 1, 18). Chama de hipócritas quem dá esmola, reza e faz jejum para serem vistos. Quem age assim estragou (corrompeu) a finalidade última destas práticas, esperar a recompensa de Deus. Na exortação que Jesus faz de que não podemos servir a Deus e ao dinheiro (cfr. Mt 6, 24), aponta-nos o perigo real do dinheiro. Ele é o fator mais decisivo para nos levar a práticas de corrupção pessoal e coletiva, social e eclesial. Como nos ensina Paulo: “A raiz de todos os males é o amor ao dinheiro. Por se terem entregue a ele, alguns se desviaram da fé” (1Tm 6, 10). “Desviaram-se da fé”, ou seja, se corromperam. Paulo, então, aponta o caminho para não cairmos na tentação da corrupção: “Procedamos honestamente, como em pleno dia” (Rm 13, 13).

O Magistério da Igreja

O Instrumento Laboris do Sínodo para a Amazônia, no nº 80, diz que na Amazônia a corrupção atinge seriamente seus povos e territórios; O nº 81, afirma que a corrupção afeta as autoridades políticas, judiciais, legislativas, sociais, eclesiais e religiosas que recebem benefícios para permitir atividades que provocam danos socio-ambientais; Já no nº 82, encontramos que os povos amazônicos não são alheios à corrupção e se transformam em suas próprias vítimas.

O nº 83 sugere que a Igreja:

a) Promova a cultura da honestidade, do respeito pelo o outro e pelo bem comum, em todas as instâncias de formação: Iniciação à Vida Cristã, Seminários, Vida Consagrada, Laicato;

b) Possa formar e acompanhar os Leigos e as Leigas para serem presença diferenciada na sociedade, especialmente na política;

c) Faça um profundo discernimento como se gera e como se investe o dinheiro;

d) Avalie sempre com muita atenção a procedência do dinheiro vindo de doações e aonde estamos fazendo nossos investimentos financeiros;

e) Inclua o estudo da Doutrina Social da Igreja (DSI) em todas as formas de formação, especialmente quem for chamado a desenvolver a atividade de liderança e que venha a ocupar serviços no campo administrativo de econômico;

f) Fortaleça onde já existe e crie aonde não existe, os Conselhos Econômicos das Comunidades, Paróquias, Dioceses e Prelazias;

g) Através das Conferências Episcopais de cada país, ofereça um serviço de assessoria qualificada para uma correta, honesta e transparente administração dos bens e recursos eclesiais;

h) Incentive a participação dos leigos e das leigas nos conselhos de direitos e que crie uma Pastoral específica para este serviço de cidadania ativa, de combate à corrupção, que é o controle social das contas públicas. Lembrando a orientação do Papa Francisco na Laudato Si’ n. 179: “Dado que o direito por vezes se mostra insuficiente devido à corrupção, requer-se uma decisão política sob pressão da população. A sociedade, através de organismos não governamentais e associações intermédias, deve forçar os governos a desenvolver normativas, procedimentos e controles mais rigorosos” para combater a corrupção no campo dos poderes executivo, legislativo e judiciário, bem como em todas as outras organizações da sociedade civil;

i) Que seja criado um Fundo Financeiro em cada país e um Fundo Financeiro Internacional para apoiar a missão na Amazônia, especialmente para as despesas com transporte aquático, para a manutenção e formação de missionários e missionárias leigos e leigas, vida consagrada e ministros ordenados, promovendo assim um verdadeiro espírito de comunhão eclesial.

Na Exortação Apostólica pós-sinodal “Querida Amazônia” o Papa Francisco questiona: “Como estão as instituições da sociedade civil na Amazônia? A corrupção é ‘uma cultura que envenena o Estado e suas instituições, permeando todos os estratos sociais. Trata-se de um verdadeiro flagelo moral’” (nº 24).


A importância da formação

Para se combater a corrupção na sociedade e na Igreja, faz-se necessário se investir na formação. Embora a formação para a cidadania e para a vida ética, continuem sendo um grande desafio. Vale a pena recordar aqui as palavras do Papa Francisco na Laudato Si’, sobre a educação, como uma necessidade para se promover qualquer mudança (o Sínodo para a Amazônia em seu documento final falou de caminhos para a conversão). Assim fala o Papa: “toda mudança tem necessidade de motivações e dum caminho educativo” (LS, 15). E neste caminho educativo que possa promover mudança (conversão), o Papa Francisco diz que são vários os espaços educacionais: “a escola, a família, os meios de comunicação, a catequese” (LS, 213). O Documento de Aparecida afirma “que a democracia e a participação política são fruto da formação que se faz realidade somente quando os cidadãos são conscientes de seus direitos fundamentais e de seus deveres correspondentes” (nº 77). Vemos assim a importância da formação para a cidadania, para se ter pessoas conscientes, que não pratiquem atos de corrupção, que não sejam coniventes com ações corruptas e que, pelo contrário, trabalhem no combate à corrupção. Nesta formação para a cidadania, tem colaborado enormemente as escolas de Fé e Política existentes em várias dioceses, paróquias e comunidades. Neste sentido, o Documento de Aparecida reconhece que “a Doutrina Social da Igreja constitui uma riqueza sem preço, que tem animado o testemunho e a ação solidária dos leigos e das leigas, que se interessam cada vez mais por sua formação teológica como verdadeiros missionários da caridade e se esforçam por transformar de maneira efetiva o mundo segundo Cristo” (nº 99f). Sobre esta formação dos leigos e das leigas o Documento de Aparecida afirma que para cumprirem “sua missão com responsabilidade”, “necessitam de sólida formação doutrinal, pastoral, espiritual e adequado acompanhamento para darem testemunho de Cristo e dos valores do Reino no âmbito da vida social, econômica, política e cultural” (nº 212). Neste processo de formação de discípulos missionários, o Documento de Aparecida destaca cinco aspectos fundamentais: o encontro com Jesus Cristo, a conversão, o discipulado, a comunhão e a missão (cfr. nº 278). No sonho ecológico do Papa Francisco em sua Exortação Apostólica pós-sinodal, ele afirma que “a grande ecologia sempre inclui um aspecto educativo, que provoca o desenvolvimento de novos hábitos nas pessoas e nos grupos humanos” (nº 58). O que o Papa fala sobre “a grande ecologia”, pode ser aplicado para o combate à corrupção. Nós temos, como Igreja, um importante e decisivo papel, na construção uma sociedade mais justa e livre de toda e qualquer forma de corrupção.


Das pequenas às maiores corrupções

O combate a corrupção deve ser feito por todos nós. Começando de nós mesmos, passando por nossas famílias, nossa Igreja e nossa Sociedade. Não pensemos que o combate à corrupção deve ser realizado apenas no combate às grandes corrupções, àquelas que movimentam grandes somas de dinheiro, as que envolvem os políticos das três esferas do poder, a saber, o executivo, o legislativo e o judiciário. É verdade, como nos ensina a Igreja, que “a corrupção política é uma das mais graves, porque trai, ao mesmo tempo, os princípios da moral e as normas da justiça social, compromete o correto funcionamento do Estado, influindo negativamente na relação entre governantes e governados, introduzindo uma crescente desconfiança em relação à política e aos seus representantes, com o consequente enfraquecimento das instituições” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, nº 411). Neste sentido, na Exortação Apostólica pós-sinodal “Querida Amazônia” no nº 25, o Papa Francisco diz que existe uma “cultura” da corrupção “que envenena o Estado e suas Instituições, permeando todos os estratos sociais, inclusive as comunidades indígenas. Trata-se de um verdadeiro flagelo moral” (ele retoma o Instrumento de Trabalho para o Sínodo para a Amazônia nº 82). Mas o Papa Francisco, não olha somente a corrupção política, coloca o dedo em nossa ferida, ou seja, ele lembra que infelizmente “não podemos excluir que membros da Igreja tenham feito parte das redes de corrupção, por vezes chegando ao ponto de aceitar manter silêncio em troca de ajudas econômicas para as obras eclesiais”. Temos assim a corrupção na sociedade dos políticos e a nossa corrupção na Igreja. A ambas precisamos enfrentar, combater, com coragem profética e muita determinação, senão para extirpá-la totalmente, quando nada para diminuí-la no meio de nós.

Mas existe a corrupção pessoal, que cada um de nós pode cometer, até sem pensar, sem planejar, sem querer ser corrupto. Pensemos, também, em nossas ações pessoais e em nossas relações interpessoais. Desde um sentar-se no lugar do idoso e da gestante em um transporte coletivo até o entregar alguma conta para ser paga por outra pessoa que está em nossa frente na fila de um caixa bancário, roubando o tempo de todas as pessoas que estão ali esperando por muito tempo para ser atendido. Desde o ficar com o troco a mais que o caixa me deu até a sonegação de impostos, não emitindo notas ou cupons fiscais em minha empresa.

Cuidemos para levar, de fato, como pede Jesus, uma vida transparente, coerente, sendo nosso sim, sim e nosso não, não (cf. Mt 5, 37) e vivendo honestamente como já vimos acima, que nos pede Paulo (cf. Rm 13, 13). Somente assim poderemos de fato, como Igreja, contribuir no combate a corrupção

Uma proposta concreta

Partilho aqui a experiência que estamos buscando implementar na Prelazia de Itacoatiara – Amazonas, Regional Norte 1 da CNBB, onde sou bispo. Trago aqui o texto da ata da reunião do Clero de setembro, portanto, antes do Sínodo, mas a partir do estudo do Instrumento de Trabalho, onde tratamos da questão da corrupção. Relata a Ata: “Na segunda parte de nosso estudo, vimos que a corrupção é um câncer social e que existem dois tipos de corrupção na Amazônia: aquela fora da lei e uma que é amparada numa legislação traiçoeira do bem comum. O Bispo pediu que comentassem a partir das realidades das paróquias, cidades e vilas. Diante do que foi lido e partilhado, o que ficou como desafio para as Paróquias da Prelazia, para colaborar no combate a corrupção. Vimos a importância de se promover a cultura da honestidade, mesmo que pareça ser em vão. Entre nós, como Igreja, fazer corretamente as prestações de contas das paróquias e comunidades, isso vai ajudar muito por estar mostrando exemplo para pessoas. Também cultivar o respeito pelo outro e pelo bem comum. Outro ponto fundamental, é formar e promover os leigos para que sejam presença nas Políticas Públicas. A outra questão, é que os padres sejam independentes do poder político para realizar as festas dos padroeiros, isto é, encontrar caminhos novos para a sustentação econômica da Paróquia que não dependa mais da ajuda do Governo do Estado e nem das Prefeituras, pois não se sabe qual é a origem deste dinheiro” (Ata da reunião do Clero Prelazia de Itacoatiara em 10 de setembro de 2019).

Que Deus nos livre deste mal da Corrupção!

 

 

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