Dom Odilo Pedro Scherer
Arcebispo de São Paulo
A Igreja tem estado na berlinda de discussões e até contestações. Geralmente, essas partem de uma compreensão insuficiente da natureza e da historicidade da Igreja de Cristo. Não admira que assim aconteça, uma vez que ela, no dizer do Concílio Vaticano II, é um “mistério” (cf LG 1), no qual convivem o divino e o humano, o visível e o espiritual, o pecado e a santidade. A Igreja será sempre “sinal de contradição” e ninguém, com uma afirmação ou uma negação, conseguirá dizer tudo sobre ela.
De qual “Igreja” estamos falando? Existem muitas Igrejas que se refazem a Jesus Cristo e, de alguma forma, se inserem na continuidade da missão que Jesus confiou aos apóstolos. Há uma longa discussão sobre a autenticidade de cada uma delas e sobre a medida em que cada uma é fiel ao ensinamento dos apóstolos e o comunica integralmente. Aqui nos referimos à Igreja Católica Apostólica Romana que, apesar de todos os problemas enfrentados ao longo de dois mil anos de história, permanece fiel a Jesus Cristo e ao ensinamento dos apóstolos.
Uma das questões mais problemáticas em relação à Igreja é a afirmação de que Cristo não fundou a Igreja, mas apenas anunciou o Evangelho. A fundação da Igreja teria acontecido depois de Cristo, pela ação dos apóstolos, ou ainda posteriormente a eles. Se isso fosse verdadeiro, estaria afirmada imediatamente uma descontinuidade entre Jesus e a Igreja e se justificaria a instituição de várias Igrejas, já na época apostólica. Ora, isso não se confirma no Novo Testamento. Pelo contrário, Jesus quis a Igreja e deixou clara a sua intenção sobre a existência e a missão dela.
Jesus reuniu discípulos e, entre eles, escolheu os apóstolos, preparando-os para a missão que lhes confiaria depois. Enviou-os para anunciarem o Evangelho, fazerem discípulos e realizarem gestos de salvação com a autoridade dele. Nas palavras da última ceia, Jesus encarregou os apóstolos de continuarem a fazer o que ele mesmo fez; na promessa de assistência do Espírito Santo a eles, nas palavras dirigidas a Pedro, confiando-lhe uma missão especial no grupo dos apóstolos e em vários momentos de sua vida, e após sua ressurreição, fica claro que Jesus quis que sua missão continuasse de forma organizada através dos discípulos. E lhes prometeu que ele próprio permaneceria para sempre com eles, tornando sua ação eficaz mediante a ação do Espírito Santo. É impensável que Jesus não tivesse a intenção de fundar a Igreja para a continuidade de sua própria ação e missão.
Mas também está claro que não se encontra um ato formal de fundação da Igreja no Novo Testamento. E ninguém pretenda encontrar uma espécie de ata de fundação da Igreja em algum cartório daquela época… A Igreja teve início com os elementos essenciais que a caracterizam na sua vida e missão. Os demais aspectos, como a sua estrutura visível, a definição pormenorizada e clara de sua doutrina, a sua liturgia e sua legislação interna, foram sendo definidas aos poucos, ao longo da história e ainda vão se explicitando, como a sua doutrina moral diante de questões novas. Mas, desde o início, era claro para todos que a Igreja está intimamente unida a Cristo e sua pregação e doutrina nunca devem entrar em contradição com o ensinamento dos apóstolos. As comunidades cristãs primitivas não punham em discussão, se Jesus queria a Igreja, ou não queria. Essa é uma discussão dos tempos modernos e contemporâneos e seu objetivo final é separar Cristo da Igreja e desautorizar a Igreja de se apresentar e falar em nome de Jesus Cristo. Se Cristo não tivesse instituído a Igreja, estaria aberto o campo para que cada um instituísse uma Igreja diferente, conforme seu projeto pessoal.
Outra coisa é questionar, se a Igreja ainda continua a ser aquela que Jesus quis. Este questionamento é possível e até saudável, pois leva a refletir seriamente sobre as características essenciais da Igreja de Cristo e a nos confrontar com elas. Desde logo, podemos lembrar que a Igreja, enquanto caminha neste mundo, está chamada a um processo contínuo de conversão a Cristo e de fidelidade a ele. Nossas maneiras históricas de ser a Igreja de Cristo deixam muito a desejar e devemos buscar o aprimoramento de nossa vida pessoal e eclesial. Por essa razão, a mesma Igreja nos recorda constantemente os chamados à conversão e à fidelidade ao Evangelho no seguimento de Jesus Cristo.
Mesmo assim, e apesar dos defeitos humanos da Igreja, ela não deixa de ser a verdadeira Igreja de Cristo. Desde os tempos apostólicos, sabemos que todos os membros da Igreja são chamados à vida santa e a contribuírem com suas capacidades e dons para a edificação do “corpo de Cristo” na caridade (cf 1Cor.12,12ss).
A Igreja de Cristo é pecadora pelo nosso lado. Porém, ela é santificada pelo Espírito Santo, que a habita, anima e conduz na fidelidade a Cristo e na fecundidade de sua missão. Somos um povo de santificados pela graça do Espírito Santo, no Batismo, chamados a ser santos na vida pessoal.