Cultura da Morte na Evangelium vitae: por ocasião dos 25 anos de sua publicação (1995-2020)

Dom Luiz Antonio Lopes Ricci.
Bispo Auxiliar de Niterói (RJ)

 

Na Solenidade da Anunciação do Senhor, este ano celebrada neste difícil momento, diante de tantas incertezas, acolhemos o Anúncio do Anjo Gabriel e o “Sim” de Maria, com alegria e gratidão ao bom Deus que fez nela e em nós maravilhas. É a partir da “Boa Notícia”, anunciada pelo Arcanjo, proclamada e consumada por Jesus Cristo, que nós seguimos tocando em frente, administrando com fé e serenidade as más notícias, agradecendo as que já chegaram e esperando as boas, que certamente virão. Acreditamos, com o Papa Francisco: “com efeito, onde houver uma necessidade peculiar, Ele (o Espírito Santo) já infundiu carismas que permitam dar-lhe resposta” (QA, n. 94).

Dentre tantos temas que poderíamos abordar à luz da Evangelium Vitae, considerando, principalmente, o tempo quaresmal, o insistente convite à conversão e a Campanha da Fraternidade 2020, julgamos oportuno falar da “cultura da morte”, não por conta da COVID-19, mas em vista da reflexão pessoal, avaliação de condutas, formação e conscientização para a construção do seu oposto, a “Cultura da Vida”, urgente e factível. Objetivamos fortalecer a esperança e renovar o nosso compromisso com a vida, dom de Deus, confiada a nossos cuidados pelo Criador, que tudo cria, recria e restaura “eis que faço novas todas as coisas” (Ap 21,5).

Evangelium vitae (Evangelho da Vida) é a décima primeira encíclica do saudoso Papa São João Paulo II, publicada na Solenidade da Anunciação do Senhor, em 25 de março de 1995, na qual ele afirma, fortemente, o valor e o caráter inviolável da vida humana. Uma expressão recorrente na encíclica é a “cultura da morte”, que torna a vida humana vulnerável e vulnerada, exposta a inúmeras formas de violência e, por isso, abreviada quando nascida ou interrompida antes de nascer.

O Papa, abordando temas referentes à origem da vida, ao seu desenvolvimento e à sua fase final, denuncia profética e criticamente a assim denominada “cultura da morte”, ao mesmo tempo em que indica os sinais positivos a favor da “cultura da vida”, fazendo um anúncio esperançoso, evangélico e incondicional a favor da vida humana – em qualquer fase e condição em que ela se encontre. A encíclica é um grito, forte e argumentado, contra o obscurecimento da consciência coletiva referente ao valor intangível da vida humana. “A presente encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de cada país do mundo, quer ser uma reafirmação precisa e firme do valor da vida humana e da sua inviolabilidade, e, conjuntamente, um ardente apelo dirigido em nome de Deus a todos e a cada um: respeita, defende, ama e serve a vida, cada vida humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás justiça, progresso, verdadeira liberdade, paz e felicidade” (n.5).

A expressão cultura da morte, indicada em 1992, pela Conferência de Santo Domingo, foi desenvolvida de modo profundo e corajoso por João Paulo II, naEvangelium Vitae. Também hoje, “nos encontramos no meio de uma luta dramática entre a ‘cultura da morte’ e a ‘cultura da vida’” (n.50).   A partir dessa provocante frase, coloca-se a seguinte questão: o que significa dizer que hoje existe uma cultura da morte? Alguns criticam essa expressão, por acreditarem ser injusto falar de cultura da morte numa época em que são inúmeros os sinais que apontam, cada vez mais, para uma crescente sensibilidade no que diz respeito ao valor e inviolabilidade da vida humana. Inclusive, João Paulo II, nesta sua encíclica e em outros pronunciamentos, reconhece os inúmeros sinais positivos em favor da vida (cf. nn. 25-28), porém acrescenta que ainda existem muitas formas de negação da vida que ajudam a desenvolver a assim denominada cultura da morte, que pode ser, apropriadamente, denominada de “anticultura”, pois não cultiva a vida. Neste sentido, a cultura da morte não é somente um conceito, mas um drama contemporâneo, que interpela e inquieta, exigindo de todos e de todas um incansável empenho pela vida. A vida humana, segundo o Papa, sempre esteve ameaçada, contudo, hoje se “apresentam novas características em relação ao passado e levantam problemas de singular gravidade: é que, na consciência coletiva, aqueles tendem a perder o caráter de ‘delitos’ para assumir, paradoxalmente, o caráter de ‘direitos’. Tudo isto explica, pelo menos em parte – como possa o valor da vida sofrer hoje uma espécie de ‘eclipse’, apesar da consciência não cessar de o apontar como valor sagrado e intocável” (n.11).

Ao falar das “atuais ameaças à vida humana” (sem desconsiderar aquelas tradicionais: injustiça, fome, pobreza, doenças, violências e guerras) e de uma espécie de “eclipse do valor da vida”, João Paulo II alerta para a gravidade dos atentados à vida e apela para que o homem contemporâneo possa procurar “as múltiplas causas que os geram e alimentam” (n.10). Para ele, algumas ameaças “são agravadas pelo descuido culpável e pela negligência dos homens que, não raro, lhes poderiam dar remédio”(n.10), ou seja, poderiam ser evitadas. Dentre as ameaças citadas por ele, cabe destacar aquela relacionada às crianças e pobres: “como não pensar na violência causada à vida de milhões de seres humanos, especialmente crianças, constrangidos à miséria, à subnutrição e à fome, por causa da iníqua distribuição das riquezas entre os povos e entre as classes sociais?” (n.10).

A cultura da morte não se reduz a uma série de opiniões ou atitudes emotivas ou comportamentais, mas se plasma, principalmente, em certas estruturas sociais, às quais o Papa denomina “estruturas de pecado”. A expressão “cultura da morte”, quando utilizada pela primeira vez, na Evangelium vitae, vem imediatamente precedida por aquela de “estrutura de pecado”. Duas expressões estreitamente relacionadas, em que a primeira deriva da segunda. “Estamos diante de uma realidade mais vasta, que se pode considerar como verdadeira e própria ‘estrutura de pecado’, caracterizada pela imposição de uma cultura antisolidária, que em muitos casos se configura como verdadeira ‘cultura de morte’”(n.12). As estruturas de pecado são criadas pelos pecados pessoais dos seres humanos, sendo estruturas injustas que possibilitam a manutenção ou expansão do mal.

A expressão “pecado estrutural ou social” foi cunhada e elaborada pela teologia latino-americana, sendo rapidamente assimilada pelo conjunto da teologia e citada nos documentos do Magistério Pontifício. Em âmbito latino-americano, o conceito pecado social é citado no Documento de Puebla, quando se fala das angústias que nascem da pobreza material: “nesta angústia e dor a Igreja discerne uma situação de pecado social, cuja gravidade é tanto maior quanto se dá em países que se dizem católicos e que têm a capacidade de mudar” (n.28). Confirma-se aqui, a constatação e corajosa advertência conciliar: “Este divórcio entre a fé que professam e o comportamento cotidiano de muitos, deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo” (GS, n.43).

As situações de pecado e pecado social implicam o não reconhecimento da dignidade humana, ferindo o princípio de igualdade fundamental entre todos os homens que “têm a mesma natureza e origem; e, redimidos por Cristo, todos têm a mesma vocação e destino divino. Embora entre os homens haja justas diferenças, a igual dignidade pessoal postula, no entanto, que se chegue a condições de vida mais humanas e justas. Com efeito, as excessivas desigualdades econômicas e sociais, entre os membros e povos da única família humana, provocam o escândalo e são obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana” (GS, n.29).

A relação existente entre pecado (pessoal e social) e cultura de morte aparece claramente no Documento de Santo Domingo. “Nisso reconhecemos a origem dos males individuais e coletivos… enfim, tudo o que caracteriza uma cultura de morte” (n.9). Situa-se aqui a primeira referência ao conceito de cultura de morte, retomado e alargado três anos mais tarde na Evangelium Vitae. A realidade é marcada pelo círculo vicioso: estruturas de pecado – cultura da morte – mistanásia (morte social, precoce e evitável), esta última como “subproduto” ou consequência direta das desigualdades injustas causadas pelas duas primeiras.

Na raiz das negações e destruições que afetam diretamente a vida está aquilo que à luz da fé chama-se pecado pessoal e estrutural: “estruturas de pecado que geram e mantêm a pobreza, subdesenvolvimento e degradação. Tais estruturas são edificadas e consolidadas através de muitos atos concretos de egoísmo humano” (Compêndio Doutrina Social, n. 332). O recurso ao conceito de pecado estrutural não permite desconsiderar a existência de uma trágica concatenação de causa e efeito. O pecado é pessoal e social ao mesmo tempo. Pessoal, porque é um ato de liberdade da pessoa e social, porque tem incidência e consequência no tecido social. Assim, pecado social é toda forma de agressão direta ou indireta à vida humana. Em sua raiz está sempre o pecado pessoal, o egoísmo humano. Por essa razão, o pecado social ou estruturas de pecado não desconsidera a responsabilidade pessoal. Ressalta-se que as estruturas de pecado estão sempre ligadas a atos concretos de pessoas concretas. Por essa razão, a insistência na conversão pessoal e vivência cotidiana dos valores cristãos.

Os “sinais de morte” e “situação de pecado” agora são identificados como “cultura de morte”, ou seja, algo mais difuso e cristalizado e, portanto, de difícil remoção ou transformação, com exigência de renovado esforço e compromisso. Nesse sentido, a evangelização não pode prescindir do lugar social e da evangélica opção pelos pobres, referenciais indispensáveis em vista do diagnóstico, planejamento e ações evangelicamente eficientes.

Sabe-se que é tarefa e dever da Igreja evangelizar as estruturas sociais e transformá-las, com os critérios que emanam do Evangelho da Vida, independente de ideologias e partidos políticos. “A formação de estruturas justas não é, imediatamente, um dever da Igreja, mas pertence à esfera da política, isto é, ao âmbito da razão autorresponsável. Nisto, o dever da Igreja é mediato, enquanto lhe compete contribuir para a purificação da razão e o despertar das forças morais, sem as quais não se constroem estruturas justas, nem estas permanecem operativas por muito tempo” (Bento XVI, Deus Caritas Est, n.29).

A promoção integral da pessoa humana passa pela evangelização da cultura de morte. Desse modo, o anúncio vigoroso do Evangelho eleva o que é bom nas culturas e, ao mesmo tempo, purifica o que se encontra marcado pelo pecado. Por isso, “a Igreja não se cansará de denunciar tudo aquilo que produz morte. A morte, inclusive a morte natural, é produto e consequência do pecado” (O. Romero).  Não basta apenas viver ou sobreviver. Deus não criou o homem “sobrevivente” ou “vítima”, mas sim o “homem vivente e livre”. A concepção extremamente restritiva do conceito vida é perigosa não coincide com o desígnio criador e salvífico de Deus. Nesse sentido, “não matarás” na versão contemporânea e cotidiana é, também, não deixar morrer. Entretanto, não apenas para garantir a sobrevivência ou conservação da vida humana, mas para o “bem viver” com dignidade de “filhos e filhas de Deus”.  A solidariedade concreta, entendida como “princípio” social e virtude cristã pode superar e transformar as estruturas de pecado que afetam as relações humanas em “estruturas de solidariedade”. Dessa maneira, o homem é convidado, em cada época, a responder ao imperativo ético fundamental da existência: “escolha a vida” (Dt 30,19).

Desse modo, após abordar a cultura da morte, sinais e causas, João Paulo II, procurando evitar certo sentimento de conformismo e pessimismo, faz um convite à esperança em Cristo, vencedor da morte. “Frente às inúmeras e graves ameaças contra a vida, presentes no mundo contemporâneo, poder-se-ia ficar como que dominado por um sentido de impotência insuperável: jamais o bem poderá ter força para vencer o mal! Este é o momento em que o Povo de Deus, e nele, cada um dos crentes é chamado a professar, com humildade e coragem, a própria fé em Jesus Cristo, o Verbo da vida (n.29).

A cultura da morte exige reforço e revigoramento da fé em Cristo e um renovado anúncio de seu Evangelho da vida, pois Jesus é “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Jesus de Nazaré é o amante da vida. Acolhe a vida e anuncia que Deus guarda e protege, com muito amor, a vida de cada homem. Cristo é o Evangelho da vida e Nele está a verdade do homem. Esta afirmação significa que o anúncio cristão, sobre a dignidade e inviolabilidade da vida, está escrito no coração de cada ser humano. A encíclica afirma que mesmo na precariedade da vida humana, Jesus realiza, plenamente, o sentido da vida: “Como Deus, amante da vida (Sb 11,26), já tinha tranquilizado Israel no meio dos perigos, assim agora o Filho de Deus anuncia a quantos se sentem ameaçados e limitados na própria existência, que a sua vida é um bem, ao qual o amor do Pai dá sentido e valor” (n.32). É com essa fé madura e perseverante que seguiremos, enfrentando as ameaças à vida, a emergente, que é a pandemia do novo Corona Vírus e as persistentes, que seguem ceifando vidas e que nem sempre são contempladas e enfrentadas com a mesma e necessária mobilização, tanto de nossa parte, como do poder público. Ainda temos um longo caminho… “O anjo do Senhor tocou-o e disse: ‘Levanta-te e come! Ainda tens um caminho longo a percorrer’. Elias levantou-se, comeu e bebeu e, com a força desse alimento, andou quarenta dias e quarenta noites até o Monte de Deus, o Horeb” (1 Rs 19, 7-8). Sigamos no percurso quaresmal e na “quarentena”, em pé, no olhar da fé e na certeza da Páscoa. Coragem! Em frente, com serenidade! Enfrente com fé, força e esperança!

Com o meu abraço fraterno, comunhão solidária e gratidão,

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