Dom Jacinto Bergmann
Arcebispo de Pelotas (RS)

A idolatria do homem pelo homem é, para Agostinho de Hipona, uma religião miserável: deterior et inferior cultus. Em vez de adorar o Deus vivo e verdadeiro, a pessoa prefere adorar-se a si mesma. 

Em verdade, a alto idolatrização do homem não é coisa geral, mas apenas dos “intelectóides e inteligentes” deste mundo (cf. Mt 11,25). Estes, como diz o salmista sagrado, “abrem a boca até os céus” (Sl 72,9), mas seu destino é a desgraça: “O Senhor ri-se do ímpio, porque vê chegar seu dia” (Sl 36,13). Essa lição, de resto, nada mais faz senão traduzir a sabedoria secular dos povos, conhecida e ratificada por Jesus de Nazaré: “Quem se exalta será humilhado” (Lc 14,11; 18,14). O Doutor de Hipona condensou essa lição na frase: “Hadam e Hayyah quiseram arrebatar a divindade, e perderam a felicidade”. 

A modernidade secularista quis afirmar o homem sem Deus e mesmo contra Deus. Ela via Deus como antagonista do homem. Postulou a morte de Deus para afirmar a vida do homem. Construiu um humanismo fechado, exclusivo e parcial. Pretenderam fazer do homem a causa sui. O homem se autofundaria, como se fosse um ens a se. Assim, Marx exaltou a autoprodução do homem. Se o homem se autoproduz, ele também se autofunda, como igualmente se autoemancipa: Homo homini deus. Até hoje ainda há resquícios em reivindicar o poder mágico do “auto”: autonomia, autossuficiência, autofundação, autoafirmação, autoconstituição, autodeterminação, e assim vai. Mesmo, após o pico de autoexaltação do homem, atingido no século XX, com suas ilusões e tragédias, o pós-moderno leva adiante a ideia do “auto”, agora, porém, sempre mais em baixo perfil: é cada indivíduo, só ou associado, que decide sua “vida” e seus “valores”. 

Não era de se prever que essa mania de “auto” levaria a um curto-circuito? Todo esse autismo antropológico não passa de uma mente, no mínimo doentia, que perdeu a conexão com o real e não vê mais a dependência do homem, não só em relação a Deus, mas a quase tudo. Claro, devemos admitir, há aí algo de legítimo: a autoafirmação limitada do homem, onde a circularidade expressa na partícula “auto”, manifesta a estrutura mesmo do espírito humano, enquanto re-flexão, con-sciência, auto-determinação. Trata-se aí, contudo, tão somente de uma autonomia relativa, nunca absoluta. 

Contudo, o ateísmo humanista rompeu todos os limites. Querendo exaltar o homem à outrance, na realidade o rebaixou. Assim, de deus que presumia ser, o homem tornou-se escravo de seus próprios caprichos ou, então, dos caprichos de um déspota qualquer. Nunca como nesse caso se aplicou com mais clareza a lei histórica do desnível entre intenção (subjetiva) e efeito (social). É correto o parecer do pensador Sciacca: “A afirmação exclusiva do homem levou à dissolução do homem, à sua destruição, primeiro mental depois física”. Homem que se quer só homem, torna-se infra-homem, quando não acaba anti-homem. 

Daí a sentença lapidar de Henri de Lubac, retomada pelo Papa Paulo VI: “O homem pode organizar a terra sem Deus, mas sem Deus só a pode organizar contra o homem. Humanismo exclusivo é humanismo desumano”. O Papa João Paulo II emenda: “Quando declina o sentido de Deus, também o sentido do homem fica ameaçado e distorcido. Os totalitarismos do século XX deram sobeja prova disso”. Eis como um discípulo de Sartre, Jean Cau, tira as consequências éticas do ateísmo moderno: “Se Deus não existe, tu és para mim como excremento. Não passas, ó homem, de um monte de excremento falante”. E se no ateu subsiste ainda certa postura ética, é, o mais das vezes, em virtude de um inconsciente fundo religioso. 

 

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