Do Parlatório da ONU ao mundo

Dom Valdir Mamede
Bispo de Catanduva (SP)

DO PARLATÓRIO DA ONU AO MUNDO: O PAPA FRANCISCO E SEU DISCURSO NA ASSEMBLEIA GERAL DA ONU 2020

 

A cada ano a Assembleia Geral da ONU tem lugar no “Palácio de Vidro”, situado na cidade de Nova York. Na ocasião, os chefes de estado e de governo a nível mundial discutem livremente temas, na busca da fraterna convivência entre os povos, ainda que em meio aos díspares interesses em jogo. Contudo, nem sempre os resultados são satisfatórios, e perduram assuntos que incomodam anos a fio a construção da paz entre as nações, donde a necessidade de não se desistir em suas tratativas.

Há exatos cinco anos atrás, o Papa Francisco, à exemplo de seus predecessores, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, compareceu pessoalmente à Assembleia Geral da ONU. Ali, desde a Tribuna reservada aos líderes mundiais, dirigiu-se ao mundo, instando as lideranças das nações à responsabilidade na condução dos destinos dos povos, sujeitos de deveres e direitos a serem meticulosamente respeitados. Agora, em 2020, em forma virtual, dada a pandemia do novo Coronavírus, uma vez mais o Romano Pontífice se dirige aos líderes mundiais. A exemplo dos demais chefes de governo e de estado, sua mensagem de vídeo, de aproximadamente 26 minutos de projeção, foi exibida. E o Papa teve muito a dizer ao mundo, e o fez com palavras claras e simples, as quais não necessitam de muitas explicações, mas, isto sim, de escuta e adesão conscientes, de modo a que, sua reflexão conduza à realização de ações concretas, em favor da restauração da harmonia e da paz no convívio entre os povos e nações.

Não se pode negar a atual crise em que se encontra a convivência em sociedade, seja a nível local que mundial. Por isso, se o mundo “tem muitos desafios multilaterais e um déficit de soluções multilaterais”, como alerta António Guterres, secretário geral da ONU, mesmo que “ninguém [queira] um governo mundial, […] temos que trabalhar em conjunto para melhorar a governança mundial”. Daí que, na assembleia anual da ONU, enquanto local privilegiado para a solução dos conflitos, o Papa Francisco tenha se dirigido aos líderes mundiais, convicto de que este organismo seja a resposta imprescindível às grandes crises do mundo contemporâneo.

Aos líderes mundiais o Papa Francisco propôs “uma mudança de rumo”, passando da “cultura do descarte” para a construção de “pontes” entre os povos, buscando antes o que congrega numa unidade forjada ao largo de um diálogo sempre em atuação. E, as diferenças que, porventura, permanecerem, servirão de fator de identificação, e nunca de ocasião para exclusivismos e excludências. O Papa Francisco sonha com um “mundo de irmãos”, no qual os progressos tecnológicos alcançados, sirvam para que as condições de vida e de trabalho das pessoas se tornem mais dignas; e sejam superadas as novas formas de escravizações do homem pelo homem.

Um dos empecilhos à construção da “fraternidade universal” é o medo face ao novo que se apresenta. E, o medo, nem sempre aconselha de modo mais adequado. Assim, o Papa Francisco alerta para o fato de que estamos defronte a uma encruzilhada. Duas são as opções: de um lado temos o reforçamento do multilateralismo como sinal de um tempo novo, mais fraterno, que se avizinha; e, de outro, as soluções populistas e irresponsáveis, as quais em nome de interesses privados e privatistas, condenam a imensa maioria das pessoas às “periferias existenciais”. O grande dilema está, então, entre vida digna para todos, ou somente para alguns. Parece até uma reprodução do romance satírico, “A revolução dos Bichos”, de autoria do escritor britânico George Orwell, o qual afirma que “todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”, numa adulteração do sétimo mandamento do Animalismo.

Pela sua estatura moral, e compromisso firme com as causas dos menos favorecidos, não se pode negar ao Papa Francisco uma liderança mundial, a qual ultrapassa os limites dos círculos católico-romanos. O seu pontificado tem sido um marco referencial seguro, sobretudo para os desfavorecidos, na atual crise mundial de falta de liderança credíveis. Como o próprio Papa Francisco se expressou, em audiência na Praça de São Pedro, aos 27 de março deste ano, “estamos todos na mesma barca”; por isso, não nos resta outra alternativa que “remar juntos”. E esta é a questão de fundo no tema do multilateralismo: remar juntos.

Em sua mensagem à Assembleia Geral da ONU, o Papa Francisco teceu inúmeras considerações sobre os temas candentes do momento. Para o Pontífice a concordância entre as partes discordantes, no exercício da boa política, enquanto dimensão essencial da caridade, passa pela reafirmação da centralidade da pessoa humana, pela defesa dos direitos humanos fundamentais, sobretudo quando violados pela má utilização da liberdade pelos que se arvoram em donos daquilo que, deveria ser para todos, a fim de que todos tivessem condições de vida digna.

Para concluir, permito-me citar o nonagenário antropólogo, sociólogo e filósofo francês, Edgar Morin, um dos intelectuais mais importantes da atualidade, ao tratar do tema das crises que nos assolam: “temos que aprender a aceitá-las e a viver com elas, enquanto nossa civilização instalou em nós a necessidade de certezas cada vez maiores sobre o futuro, muitas vezes ilusórias, às vezes frívolas”, para concluir em tom magistral, “tentamos nos cercar com o máximo de certezas, mas viver é navegar em um mar de incertezas, através de ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos reabastecemos”.

Apropriando-me, talvez indevidamente, do texto supracitado, é preciso nos reabastecermos no arquipélago das certezas que o Papa Francisco nos tem oferecido, sobretudo em seu magistério ordinário, mormente, em seu discurso à Assembleia Geral da ONU no último 26 de setembro de 2020. Encontraremos novo vigor para a batalha da construção de um tempo melhor, de um mundo onde todos nos sintamos, e de fato sejamos, mais irmãos.

 

 

 

 

 

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