Dom Alberto Taveira Corrêa
Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará (PA)
Muitas vezes rezamos e cantamos com a Igreja: “A palavra de Deus é a verdade, sua lei, liberdade! A lei do Senhor é perfeita, conforto para a alma, o testamento do Senhor é verdadeiro, sabedoria dos humildes. Os preceitos do Senhor são justos, alegria ao coração. O mandamento do Senhor é reto, esplendor para os olhos” (Cf. Sl 18/19, 8-9). O contato com o amor de Deus nos faz extasiados diante da grandeza e perfeição de sua obra, a harmonia que resplandece na criação, a beleza com que o Senhor brinda seus filhos e filhas. Da parte dele, tudo é bem-feito!
A Palavra de Deus é a verdade! Num tempo de incertezas, quando as ideias oferecidas se parecem com areia movediça, Deus nos atrai para junto de si e nos envia como mensageiros da verdade! Trata-se da verdade que não esmaga nem oprime as pessoas, mas as liberta. Ouvir com docilidade a Palavra do Senhor é caminho de felicidade e realização para todas as pessoas. Se em alguma época, pelas nossas falhas humanas, os cristãos ou a Igreja pretenderam impor os conceitos oriundos da Escritura e da Sabedoria cultivada ao longo de séculos, sabemos que as lições da própria história nos fizeram mais humildes, para que nem mesmo a tentação da propaganda, tão própria de nossos dias, seja o caminho para a divulgação da Boa Nova. Esta se propaga por atração e não por imposição ou por pressão de qualquer ordem.
A lei de Deus é liberdade para todas as pessoas, não um jugo a ser carregado ou uma proposta de limite aos impulsos humanos. Um homem ou uma mulher que observam os mandamentos da lei de Deus são infinitamente mais realizados do que quem se escraviza ao pecado e à maldade. É muito melhor, mais digno e mais humano viver a lei de Deus. E o mundo todo tem sede e fome de pessoas que nivelem pelas alturas da graça de Deus os objetivos a alcançar e os planos de vida. É bom que esta convicção seja cultivada em nós, para que, diante da voragem de maldade existente, nenhum complexo de inferioridade nos roube a certeza de que vale a pena viver em Deus e segundo a sua lei.
Os preceitos do Senhor são justos, são alegria para o coração humano. As leis e a justiça da terra, por mais perfeitas que sejam as propostas ou as organizações da sociedade, serão sempre passíveis de revisão e aperfeiçoamento. E podem existir, como de fato existem, leis iníquas, contrárias ao projeto de felicidade que Deus inscreveu na criação e levou à perfeição quando enviou seu Filho amado, Palavra de Deus feita Carne para a nossa salvação, liberdade e felicidade.
Quando as pessoas se aproximavam de Jesus, traziam em seu coração os sonhos plantados pelos profetas, que se expressavam de forma tão poética quanto realista: “Dizei aos aflitos: Coragem! Nada de medo! Aí está o vosso Deus, é a vingança que chega, é o pagamento de Deus, ele vem para vos salvar! Então, os olhos dos cegos vão se abrir e abrem-se também os ouvidos dos surdos. Então os aleijados vão pular como cabritos e a língua dos mudos entoará um cântico, porque águas vão correr no deserto, rios na terra seca. O chão duro vai se mudar em pântano e o seco vai se encher de minas d’água, o lugar onde dormiam os chacais será lavoura de juncos e papiros” (Is 35, 4-7). E constataram que não havia exagero na palavra do Profeta, pelas multidões que acorriam ao Senhor e não voltavam desiludidas às suas lides cotidianas.
O Evangelho de São Marcos (7, 31-37) narra o encontro de Jesus com um surdo mudo, acontecido em regiões próximas ao paganismo, para que ficasse patente que o Senhor fora enviado para todos. Impressiona o modo como Jesus trata as pessoas, quando tomou o homem à parte, afastando-o da multidão! Sabemos o quando a surdez suscita insegurança em quem tem tal dificuldade! Jesus o trata com imenso afeto, toca em seus ouvidos, usa a própria saliva, toca na língua daquele homem! É uma nova criação, pois só ele restaura e eleva a obra descrita nas primeiras páginas da Bíblia. “Abre-te, Efatá!” Ouvidos se abrem, língua solta para um homem antes escravo do medo! Naquele homem estão todas as nossas fragilidades e inseguranças, nosso isolamento e traumas que nos fecham ao contato aberto e livre com as outras pessoas!
Os comentários da multidão aos gestos de Jesus são de uma atualidade surpreendente: “Cheios de grande admiração, diziam: Tudo ele tem feito bem. Faz os surdos ouvirem e os mudos falarem” (Mc 7, 37). Trata-se de uma provocação positiva destinada a todas as gerações na terra. Jesus é Deus, mas é plenamente homem, e tudo o que faz traz a marca da perfeição. Olhando para ele, seguindo seus passos e acolhendo a sua graça, também nós poderemos caminhar na estrada da perfeição, que não se confunde com perfeccionismo escrupuloso e maníaco, mas se expressa na atenção contínua ao bem que pode e deve ser feito. Um rastro de bondade pode ser deixado após a passagem de um cristão em qualquer ambiente. Começa na própria casa, no cuidado com as pessoas e as coisas, amplia-se no cuidado com o que o Papa chama de “Casa Comum”, torna-se concreto no serviço de caridade e na prática da justiça (Cf. Tg 2, 1-5) e na sensibilidade aguçada para os valores que constroem um mundo mais digno. É o que se espera da presença do cristão, onde quer que se encontre.
Supere-se, pois, todo esmorecimento e todo relaxamento diante dos desafios do tempo presente. Não nos permitamos ser esmagados pelas tão propaladas crises de toda ordem, que nos cercam de forma tão voraz e provocante. É hora de erguer a cabeça, olhar para o alto e para frente, conduzidos pela força do Espírito Santo que nos sustenta e nos prepara para o combate quotidiano!