A série de entrevistas com os membros da Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) sobre as perspectivas pastorais neste ano de 2021 traz agora a visão do arcebispo de Porto Alegre (RS) e primeiro vice-presidente da CNBB, dom Jaime Spengler, sobre o tempo presente e a atuação da Igreja.
Dom Jaime comenta sobre a proposta de formação de discípulos missionários de Jesus Cristo à luz das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (DGAE 2019-2023), particularmente nesse período de pandemia que se estende desde o início de 2020. “Pode-se dizer que a situação de calamidade pública em razão da pandemia de Covid-19 favoreceu algumas iniciativas até então pouco consideradas viáveis: catequese on-line, formação on-line, reuniões e encontros também on-line”, observou dom Jaime.
Para o primeiro vice-presidente da Conferência, a contribuição da entidade às Igrejas particulares “nestes tempos confusos e incertos” traz as marcas do princípio de subsidiariedade, oferecendo indicações. “Neste momento, a intenção, tendo como ponto de referência o ‘Pilar da Palavra’, é ainda uma vez ressaltar o lugar da Palavra de Deus na vida dos fiéis e, consequentemente, das comunidades”, destaca.
Sobre a formação de ministros ordenados e religiosos, dom Jaime observa que são encontrados candidatas e candidatos “bem-dispostos, generosos, despojados”, mas elenca desafios da sociedade refletidos nos vocacionados.
Dom Jaime também destacou a importância de continuar promovendo e assegurando “com discernimento evangélico” o necessário para que os organismos do Povo de Deus “possam desenvolver e realizar o que lhes compete por identidade e missão”.
Ao final da entrevista, dom Jaime destaca uma palavra de coragem para o tempo atual:
“O tempo presente está exigindo muito de todos. Não podemos considerá-lo como parênteses, na expectativa de que tudo voltará a ser como antes de 2020. A história está nos oferecendo ocasião privilegiada para rever métodos, linguagem, expressões e conteúdo. Ela está oferecendo uma chance para avaliar nosso ardor missionário”.
Confira na íntegra:
1. A CNBB tem trabalhado na implementação das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora. Sobre as DGAE, o que o senhor observa de passos dados até aqui em relação à formação dos discípulos de Jesus Cristo em comunidades eclesiais missionárias? A pandemia favoreceu de algum modo essas comunidades?
Dom Jaime Spengler – Passar de uma prática religiosa marcada predominantemente pela religiosidade popular pelo devocionismo e mesmo, em alguns ambientes, pelo sincretismo religioso, para uma vida de fé caracterizada pela experiência do encontro com a pessoa de Jesus Cristo pressupõe a graça divina e o empenho da pessoa batizada em compreender sempre mais e melhor em que consiste a fé no Crucificado-Ressuscitado.
A imagem da “casa” serviu de modelo para as atuais Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora. A “casa” é lugar de encontro, intimidade, convivência, solidariedade, oração, acolhida. Na casa se ingressa, e dela se parte! A casa é a imagem daquilo que as Diretrizes denominam comunidades eclesiais missionárias. Ela está construída sobre quatro pilares: a Palavra, o Pão, a Caridade e a Ação Missionária.
As Diretrizes, fruto do empenho de todo o episcopado, orientam e impulsionam o processo de evangelização no Brasil; sim, cada vez mais urbano, mas também sempre mais plural também nas suas expressões religiosas. Elas oferecem indicações vigorosas para que, cada Igreja particular a partir da sua realidade, em sintonia com as orientações do Santo Padre e da Conferência Episcopal, possa promover a missão comum de testemunhar e anunciar o Evangelho de Jesus Cristo, a constituição de comunidades eclesiais missionárias e a consciência da urgente necessidade de cuidar da Casa Comum.
A situação de pandemia que vivemos, tem exigido de todos criatividade e ousadia para continuar dinamizando a formação dos discípulos de Jesus Cristo. Verdade é que a pandemia chegou de supetão, encontrando-nos não suficientemente preparados para responder à altura diante das limitações impostas a todos. As lideranças das comunidades – bispos, presbíteros, diáconos, consagrados, catequistas, ministros leigos – tiveram de buscar alternativas para avançar na obra da evangelização. Nesse sentido, pode-se dizer que a situação de calamidade pública em razão da pandemia de Covid-19 favoreceu algumas iniciativas até então pouco consideradas viáveis: catequese on-line, formação on-line, reuniões e encontros também on-line. Temos informações de que no interior de muitas famílias houve um crescimento na vida de oração; outras desenvolveram a prática da Leitura Orante da Palavra. Há também grupos que promoveram encontros periódicos de formação permanente, utilizando-se de plataformas que a tecnologia digital oferece. Se está compreendendo que há alternativas àquilo que até março de 2020 era o habitual; percebe-se que podem ser desenvolvidos outros modos de evangelizar, com outros meios, por vezes com menores custos e menos desgaste físico, embora, deve-se dizer, a presencialidade física conserva algo que o digital não substitui.
2. Mesmo com as diretrizes já oferecidas e os planejamentos de cada Igreja particular aplicarem de diferentes formas as indicações da Conferência Episcopal, que tipo de contribuições a CNBB ainda pode oferecer para a aplicação das DGAE durante este ano?
Dom Jaime Spengler – Quando tratamos das possíveis contribuições da Conferência Episcopal para a aplicação das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora é necessário, antes de tudo, ter presente alguns aspectos de sua missão: fomentar uma sólida comunhão entre os Bispos que a compõem; ser espaço de encontro e de diálogo, com vistas ao apoio mútuo, orientação e encorajamento recíprocos; concretizar e aprofundar o afeto colegial; estudar assuntos de interesse comum; facilitar a convergência da ação evangelizadora; favorecer a comunhão e participação na vida e nas atividades da Igreja, das diversas parcelas do povo de Deus.
Vale aqui ressaltar um dos aspectos da missão da Conferência: facilitar a convergência da ação evangelizadora (…), oferecendo diretrizes e subsídios às Igrejas locais. Tendo presente este elemento, se está buscando construir algumas indicações viáveis a partir do “Pilar da Palavra” para a aplicação das Diretrizes. Por que desta iniciativa? Sente-se sempre mais necessário compreender a importância determinante da Palavra de Deus na vida dos discípulos e discípulas de Jesus Cristo. A atual crise produzida pela pandemia pôs ainda mais em destaque esta necessidade. Para a renovação das comunidades não se entrever outro caminho senão aquele que passa pela Palavra. O futuro da Igreja e do mundo se encontra na Palavra de Deus, que conserva e desvela o Projeto do Reino para todos os tempos.
A contribuição da Conferência às Igrejas particulares nestes tempos confusos e incertos traz as marcas do princípio de subsidiariedade. Ou seja, oferecer indicações. Neste momento, a intenção, tendo como ponto de referência o “Pilar da Palavra”, é ainda uma vez ressaltar o lugar da Palavra de Deus na vida dos fiéis e, consequentemente, das comunidades. Não se pode esquecer que o Texto Sagrado, a Bíblia, é palavra pronunciada por Deus, e que nos comunica a graça da restituição da nossa identidade: somos filhos e filhas de Deus e, portanto, irmãos.
Não estamos exagerando se afirmarmos que a Palavra é via privilegiada para dar forma ao presente da própria Igreja, além de representar o único horizonte de futuro plausível, tendo como “pano de fundo” o bem comum e a necessidade urgente de promover o cuidado da Casa Comum.
3 – Uma Igreja que favorece a formação de comunidades eclesiais missionárias, à luz da evangélica opção preferencial pelos pobres, em saída, presume ministros preparados para encarar a realidade desafiadora dos tempos atuais. Dada a sua experiência junto com a vida religiosa consagrada e com os ministérios ordenados, o que podemos destacar como horizontes importantes que essa parcela escolhida do povo de Deus deve seguir?
Dom Jaime Spengler – A Igreja sempre se ocupou com grande diligência da formação de seus ministros. Também as diversas expressões de Vida Consagrada se empenharam, e empenham, na formação de seus membros. Recentemente a Congregação do Clero publicou um importante documento sobre a formação dos presbíteros (O dom da Vocação). A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, reunida em assembleia geral, tendo presente as orientações da Congregação, aprovou Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil. Também recentemente aprovou Diretrizes para a formação de Diáconos Permanentes. A Conferência dos Religiosos do Brasil tem se empenhado para promover oportunidades de formação aos seus membros. Pode-se afirmar que há um grande esforço para favorecer a formação de ministros ordenados e consagrados. Encontramos candidatas e candidatos bem-dispostos, generosos, despojados. Contudo, se constatam também desafios.
De um lado, encontramos orientações precisas da Igreja em relação à formação de seus ministros e pessoas consagradas; de outro; somos confrontados por situações as mais diversas: jovens não iniciados na fé; fragilidade humana dos candidatos; experiências religiosas, por vezes, marcadas por rigidez, devocionismos desfocados e pouco senso de pertença comunitária. É uma realidade que repercute dentro das casas de formação, exigindo dos formadores foco, determinação e discernimento. Logicamente, encontramos repercussão desta realidade dentro de presbitérios, diaconios e comunidades de consagradas/os.
Numa sociedade marcada pela autorreferencialidade, autonomia e individualismo, a Igreja, nos seus ministros e pessoas consagradas, se sente atingida por tal situação, nem sempre simples ou fácil de superação. Por isso, a Comissão Episcopal Pastoral para os Ministérios Ordenados e a Vida Consagrada, juntamente com a Conferência dos Religiosos do Brasil e a Conferência Nacional dos Institutos Seculares, regularmente promove encontros, cursos e oportunidades de formação para esta parcela do Povo de Deus. O intuito da Comissão é promover espaços de diálogo, troca de experiências, oportunidades de oração, construção de iniciativas comuns e tempos de formação.
A crise atual, escancarada pela pandemia do coronavírus, está revelando uma doença social que precisa ser acompanhada e oxalá curada: os nossos estilos de vida, onde já não há lugar para o humano, para o encontro, para o transcendente, para uma vida interior rica e para o silêncio e a oração, exigem atenção diferenciada. Nisto os ministros ordenados e as diversas expressões de vida consagrada têm uma missão relevante, pois este é um tempo que requer o resgate das perguntas fundamentais, das questões decisivas da existência humana. Daí a indispensabilidade de mulheres e homens capazes de promover diálogo, apontar possíveis respostas a tais perguntas e indicações para o desenvolvimento de tais questões.
Na Igreja do Brasil não faltam vozes proféticas, atentas aos desafios da evangélica opção preferencial pelos pobres. Também não faltam sinais de solidariedade nas inúmeras comunidades de fé. A campanha “É tempo de Cuidar” tem demonstrado o quanto existe de solidariedade em tantíssimas comunidades! Além disso, vale destacar as muitas iniciativas pessoais e institucionais em favor da vida, e da vida dos mais vulneráveis. Uma de nossas fragilidades talvez seja a de não registrar o quanto se empenha em favor da defesa e promoção da vida, seus desdobramentos e resultados.
4- As iniciativas de comunhão com os diferentes organismos do povo de Deus devem continuar em 2021? Qual a importância disso?
Dom Jaime Spengler – Os organismos do Povo de Deus, de forma especial os que são constituídos por leigos, mas não só, expressam os diversos rostos da Igreja, as muitas iniciativas evangelizadoras, o empenho de muitas pessoas em anunciar e promover os valores do Evangelho do Crucificado-Ressuscitado, o senso de pertença e de corresponsabilidade pela promoção e dinamização da missionariedade da Igreja.
Creio ser impensável não continuar, não somente promovendo, mas também assegurando com discernimento evangélico o necessário para que os organismos possam desenvolver e realizar o que lhes compete por identidade e missão.
Os organismos do Povo de Deus são espaços privilegiados para que os envolvidos levem a termo sua missão específica: agir no mundo como Igreja, sendo nele um autêntico testemunho da mensagem do Reino, vivido de forma autêntica na própria vida, nos diversos espaços sociais.
Não podemos esquecer que a Igreja é uma realidade formada por um todo, não segundo a carne, mas no Espírito Santo. Por isso, “nenhuma desigualdade (…) em Cristo e na Igreja, por motivo de raça ou de nação, de condição social ou de sexo, porque não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus” (Concílio Vaticano II. Lumem Gentium, n. 32).
5 – Gostaria de destacar algo mais?
Dom Jaime Spengler – O tempo presente está exigindo muito de todos. Não podemos considerá-lo como parênteses, na expectativa de que tudo voltará a ser como antes de 2020. A história está nos oferecendo ocasião privilegiada para rever métodos, linguagem, expressões e conteúdo. Ela está oferecendo uma chance para avaliar nosso ardor missionário. Este pode ser tempo oportuno para redescobrir o Deus encarnado, o Deus próximo, terno e misericordioso; o Deus comprometido com a humanidade. Talvez Deus e a história estejam nos oferecendo uma oportunidade para resgatarmos as coisas simples do convívio: o abraço amigo, o aperto de mão e o estender a mão sempre necessários, o beijo respeitoso, o olhar profundo capaz de desvelar o íntimo de cada um. Ao mesmo tempo, nos brindando com a possibilidade de redescobrir a beleza “dos lírios do campo”, “dos pássaros do céu”, das estrelas, dos rios e das matas, enfim a nobreza, dignidade e importância da Casa Comum, como casa de todos. Afinal, todos somos irmãos!