Já são mais de 50 mil venezuelanos que cruzaram a fronteira entre o país vizinho e o Brasil, ocupando Pacaraima, Boa Vista e outras cidades de Roraima. A situação, de acordo com o bispo local, dom Mário Antônio da Silva, “continua muito dramática, tanto na questão do atendimento à saúde, do atendimento educacional e também da segurança”.
Em entrevista, o prelado comenta a polêmica em torno de um decreto do governo local que, na última semana, pedia passaporte para acesso a serviços públicos. A medida foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Dom Mário também aborda o encaminhamento e a interiorização de famílias venezuelanas, o acesso a trabalho, a inserção dos migrantes no contexto pastoral da diocese e a criação de um plano de integração dos venezuelanos apoiado com os recursos do Fundo Nacional de Solidariedade (FNS) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Também falou sobre uma situação específica de Pacaraima, o pároco da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, padre Jesus Lopez Fernandez de Bobadilla. Para ele é um caso “alarmante”.
Em Roraima, atualmente, dos 50 mil venezuelanos que cruzaram a fronteira, 10% está em nos abrigos, de acordo com dom Mário. São mais de 2 mil pessoas nas ruas, calçadas e praças da capital Boa Vista. Os demais estão em casas alugadas ou ocupadas.
Confira a entrevista na íntegra:
Gostaríamos de atualizar as informações sobre a realidade da migração em Roraima. Sobre as dificuldades impostas pelo governo do estado, ao pedir passaporte para acesso aos serviços públicos. Após a suspensão pelo STF, o que mudou?
Na verdade, o governo do estado, através de um decreto, emitiu um pedido de passaporte para os imigrantes mediante os atendimentos ou serviços públicos, mas um decreto que não chegou a vigorar devido à suspensão do STF. Na verdade, o que mudou foi o acirramento dos ânimos tanto de venezuelanos, quanto de brasileiros, o que gerou um pouco mais de irritação e comentários um tanto xenófobos por parte da população brasileira. Não causou grandes transtornos, tendo em vista que o decreto não entrou em execução, mas na verdade a situação continua muito dramática, tanto na questão do atendimento à saúde, do atendimento educacional e também da segurança. Muitos casos de violência envolvendo brasileiros e venezuelanos. Uma situação preocupante que nos faz estar vivendo numa cidade assim de uma tensão muito grande.
A gente espera que essas atitudes do governo do estado possam abrir um pouco mais o olho do Governo Federal, porque o Governo Federal está dando uma ajuda muito tímida para a questão migratória aqui em Roraima. Tem aqui o Exército com a Força Tarefa Humanitária, os milhões [de reais] todos no Ministério da Defesa, mas que atende nos abrigos cerca de 10% da população migrante e refugiada no Estado de Roraima, então atende uma população muito pequena. Essas atitudes do Governo do Estado, mais do que efetivá-las em si são para importunar ou provocar o Governo Federal a dar mais atenção, ou seja, subsidiar economicamente o setor da saúde, da educação, da segurança e outros fundamentais da vida da população brasileira e também dos migrantes.
Como tem acontecido o encaminhamento e a interiorização de famílias venezuelanas? E o acesso a trabalho e melhores condições tem sido promovido de que forma e por quem?
Um dos principais pontos do projeto do Governo Federal, através do Ministério da Defesa, com a Força Tarefa Humanitária comandada pelas Forças Armadas, sobretudo o Exército, é realmente a interiorização de pessoas e famílias venezuelanas nos demais estados no Brasil. É um trabalho que começou, mas, até o dia de hoje foram interiorizadas pouco mais de 800 pessoas. O que se concluiu é que está sendo uma interiorização muito lenta, talvez por falta de abertura dos estados e municípios em acolher e prontificar para viabilizar trabalho e fonte de renda para os venezuelanos em suas localidades. De tal maneira que o processo de interiorização não está sendo a contento. Na questão de trabalho e melhores condições, aqueles que estão em Boa Vista procuram através de trabalhos informais, muitos empresários, pequenos empresários, muitas famílias, muitos sitiantes estão possibilitando trabalho e geração de renda para os migrantes.
A gente tem até reconhecido e valorizado todas as pessoas, instituições e empresas que têm gerado emprego e oferecido oportunidade de renda para a população migrante, sem esquecer, evidentemente, também as necessidades de brasileiros e brasileiras à luz de tanto desemprego em nossa nação.
Estamos com vários projetos e parcerias na tentativa de provocar ou construir algo no campo da geração de renda, mas ainda não temos nada efetivado. O que se depende é da boa vontade das pessoas que podem oferecer oportunidade de emprego e aí uma oportunidade de geração de renda. Em vários serviços, inclusive na diocese, temos oferecido vaga de trabalho para os venezuelanos que estão aí com qualificação para o mercado de trabalho.
– – Uma questão interessante do ponto de vista da evangelização: A Igreja de Roraima já pode ser considerada com um novo rosto? Como tem sido a acolhida e a inserção destes irmãos no contexto pastoral da Igreja?
Temos dito, desde 2016, que a nossa vida mudou. O cenário de Roraima mudou, de nossas cidades e também de nossas comunidades. Mudou também a maneira de rezarmos, a maneira também fazermos a caridade e de conviver com nossos irmãos venezuelanos. Uma questão muito importante que acontece aqui são as programações pastorais e celebrativas em língua espanhola e na língua indígena Warao para possibilitar a eles uma melhor participação. Várias comunidades aqui de Boa Vista e também de outros municípios onde se encontram os venezuelanos, têm oferecido espaço para estudo da língua portuguesa, para orientações de documentação e até mesmo de possibilidade de estar se integrando entre eles para se formarem como grupo, se encontrarem como famílias e como grupos em nosso meio. Se ainda não tem um novo rosto, a Igreja de Roraima já tem novos traços. E esses traços são dos migrantes venezuelanos que vêm com sua alegria, com a sua espiritualidade, com sua participação no canto litúrgico, também na dança e em todas outras atividades de nossas comunidades.
A acolhida e a inserção têm exigido bastante de algumas comunidades que têm ao redor de suas Igrejas, até mesmo da residência de nossos fiéis, os venezuelanos que estão nas ruas, porque, infelizmente, com toda a população migrante em Roraima, só na capital Boa Vista tem mais de 2 mil pessoas nas ruas.
O trabalho de inserção não está sendo fácil, até mesmo no contexto da Igreja, mas tem existido por parte dos nossos irmãos católicos e até mesmo de outras religiões, mobilizações de grupos para oferecer alimentação e roupa, para se mobilizar campanhas até de remédio ou providenciar o necessário tratamento para eles.
Plano de Integração
Nós estamos elaborando neste mês um “plano de integração” que está sendo pensado juntamente com a Cáritas Brasileira, com várias instituições, organismos, congregações e com instituições que estão trabalhando com a migração aqui em Roraima. É um plano de integração que tem o apoio total da CNBB, através do Fundo Nacional de Solidariedade. E queremos contar com a colaboração de arquidioceses, dioceses e paróquias, também contar com o apoio da Cáritas Brasileira, diocesanas e cáritas paroquiais, além de contar com as congregações religiosas e outras instituições que participam de nossas comunidades católicas. Também estaremos abrindo este plano para cooperação de outras instituições e organismos que visem e que possibilitem a acolhida de famílias e pessoas venezuelanas em suas localidades.
A gente espera que, com esse plano de integração, possamos dar mais dignidade à população venezuelana que chega a Roraima e, sem condições de se permanecer aqui dignamente, poderão viver com esperança e dignidade em outra região do Brasil.
Dom Mário pede ao padre Jesus Lopez Fernandez de Bobadilla, da paróquia Sagrado Coração de Jesus, onde acontecem vários trabalhos de acolhimento e acompanhamento para com os venezuelanos, que fale como está a situação dos últimos dias em Pacaraima.
A situação nos últimos dias aqui em Pacaraima é simplesmente alarmante. O número de nossos irmãos venezuelanos que chegam à nossa pequena e pacata cidade está se multiplicando. Eles vêm, aliás, com pressa, com medo de que aconteça o que correu em boato de que a fronteira seria fechada. Então, lógico, o número de venezuelanos se multiplicou. Eu calculo mais de três mil pessoas na rua, passando frio, passando fome, enfrentando a chuva. E nós, como paróquia, tentamos palear de alguma maneira essa situação.
Faz mais de um ano que inauguramos o café fraterno, damos café da manhã para os venezuelanos. Hoje [ontem, dia 14 de agosto] foi algo tremendo: nós estamos dando uns 1600 por dia e hoje ficaram mais de 500 pessoas sem café. Tanto é assim que, já amanhã [hoje], estamos já dispondo de café e pão para umas 2 mil pessoas. A perspectiva não é boa, os sinais que vem de Caracas continuam sendo alarmantes e não sei se continua assim, a situação está ‘explosiva’.
Que Deus continue nos ajudando e procuremos também que os governos do mundo inteiro pressionem as autoridades venezuelanas para que procurem fazer alguma coisa que favoreça a população, que simplesmente está morrendo de fome e fugindo para não morrer de fome. No Brasil, aqui em Pacaraima, está uma demonstração de acolhida e atendimento a este povo tão maltratado.