O laicismo se caracteriza pelo desprezo da religião e das instituições religiosas. Pretende uma cultura totalmente secularizada. A religião deve ser confinada á vida privada, devendo o espaço público ser a-religioso. E a confusão se acentua quando se julga que opções éticas de origem religiosa são destituídas de racionalidade. Santo Tomás, ao reconhecer à filosofia sua identidade própria como esforço da razão, assinalou como sua precípua missão clarear as bases racionais da fé, os chamados “praeambula fidei”, ou seja, aquelas verdades de ordem natural sem as quais seria impossível sustentar a racionalidade do ato de crer.
A modernidade, na medida em que construiu seu pensamento em oposição à revelação cristã de onde ela nasceu, acabou por esquecer o que de melhor existe no ser humano: sua abertura para o mistério. A autonomia da razão acabou por se transformar em auto-suficiência fechando-a para uma possível revelação de Deus. Admite-se apenas um Deus domesticado, dentro dos limites da razão. Pensou-se em instituir uma religião natural nascida das exigências da razão e que fosse o fundamento racional de uma ordem ética elaborada pela humana inteligência. Deus se tornou uma idéia, um princípio explicativo do universo e não mais um sujeito que entra em contato pessoal com o ser humano revelando-se a ele como o sentido último e definitivo de sua existência. Um Deus assim, não é um Deus conosco, nem amigo, nem companheiro, nem irmão, nem Pai, nem amor.
A razão humana, nesse contexto, passa a ter prerrogativas divinas. Os princípios morais se impõem em nome da razão tão somente. Entretanto, uma razão sensata, sem nada perder de sua dignidade, abre-se para o mistério e acolhe com gratidão a comunicação amorosa de Deus que se dá a conhecer e convida o ser humano a saciar-se com sua verdade e vida abundante. Na luz dessa experiência a razão corrige as inevitáveis distorsões de sua interpretação da realidade e amplia para si seu horizonte de compreensão. Sem Deus falta o fundamento último da realidade, a razão torna-se um sujeito absoluto e o ser humano não tem, para além de si mesmo, um valor ao qual entregar sua inteligência e seu coração. O risco inevitável é que um indivíduo ou uma parcela da humanidade reivindique para si a prerrogativa de ser a expressão acabada da razão e queira impor aos outros sua verdade. Ou, então, que a humanidade se torne uma babel. Mais que nunca a humanidade precisa de consenso em torno do como viver e construir a vida em sociedade e mais que nunca grassa por toda a parte um individualismo onde cada qual se sente no direito de viver e agir de acordo com seus interesses ou caprichos.
A pretensão iluminista de se chegar pelas forças de uma razão autônoma a um consenso em torno de valores universais se exauriu e o desejo – a liberdade e a vontade de poder –, livre dos entraves de uma razão universal, está a tomar conta da cultura. Cumpre-se assim a profecia de Nietsche: Deus morreu e com Ele morreram os valores. Donde a importância das afirmações de Bento XVI, no discurso inaugural da Conferência de Aparecida, a esse respeito: “Quem exclui Deus do seu horizonte falsifica o conceito de ‘realidade’ e, por conseguinte, só pode terminar por caminhos equivocados e com receitas destruidoras”. “A primeira afirmação fundamental é, pois, a seguinte: somente quem reconhece Deus, conhece a realidade e pode corresponder-lhe de modo adequado e realmente humano.
A verdade desta tese resulta evidente diante do fracasso de todos os sistemas que põem Deus entre parênteses”. “Onde Deus está ausente, o Deus do rosto humano de Jesus Cristo estes valores não se mostram com toda a sua força, nem se produz um consenso sobre eles. Não quero dizer que os não-crentes não podem viver uma moralidade elevada e exemplar; digo somente que uma sociedade na qual Deus está ausente não encontra o consenso necessário sobre os valores morais e a força para viver segundo a pauta destes valores, também contra os próprios interesses”. Nós, cristãos, não podemos impor – temos a missão de propor – nossa fé aos outros. No que se refere aos valores que devem vertebrar a vida da sociedade temos o direito e o dever, como cidadãos, de lutar para que se façam leis que respeitem e coloquem em prática esses valores, aos quais a humana inteligência pode chegar pela reflexão, quando aberta e sensível à verdade O laicismo, na medida em que menospreza tudo o que vem da religião, é preconceituoso, intolerante e nada razoável.
Bento XVI nos lembrava: “Diante duma razão a-histórica que procura autoconstruir-se somente numa racionalidade a-histórica, a sabedoria da humanidade como tal – a sabedoria das grandes tradições religiosas – deve ser valorizada como realidade que não se pode impunemente jogar na cesta de lixo da história das idéias”.