Dom Leomar Brustolin
Arcebispo de Santa Maria (RS)
Refletir sobre justiça e misericórdia exige revisar conceitos frequentemente limitados ao senso comum. No contexto da fé cristã, e à luz da Misericordiae Vultus (2015), Bula do Papa Francisco, somos convidados a superar visões rígidas e legalistas, promovendo uma integração entre justiça e misericórdia. O saudoso papa afirmava que a misericórdia tem o rosto de Cristo e vai além de palavras: é um chamado à conversão.
A justiça, comumente compreendida como “dar a cada um o que lhe é devido”, foi historicamente associada à reciprocidade — retribuir o bem com o bem e o mal com o mal. Essa lógica, já criticada por filósofos como Sócrates e Platão, apresenta limitações profundos. Para São Tomás de Aquino, verdadeira se realiza na proporcionalidade e na distribuição conforme as necessidades, não apenas segundo méritos sociais ou posições de poder.
Diante da realidade de milhões em situação de miséria, a justiça precisa ir além da distribuição baseada no mérito. Papa Francisco propôs uma “misericórdia pública”, que transcenda os atos individuais e se manifeste em estruturas sociais justas, capazes de atender às necessidades básicas de todos. Nesse sentido, a justiça social se edifica sobre a base da misericórdia, unindo o cuidado concreto ao compromisso político e social.
A misericórdia, embora central na tradição cristã, é hoje muitas vezes vista com desconfiança – tratada como fraqueza ou como substituta ineficaz da justiça. Pensadores como Kant criticaram sua relação com as emoções, enquanto correntes políticas temeram que ela comprometesse projetos de justiça estrutural. No entanto, a fé cristã reafirma que a misericórdia não é passividade, mas movimento ativo em direção à dor do outro, transformando a convivência social e política em verdadeira fraternidade.
O estimado Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, reforça a urgência de reconstruir o tecido social com base na solidariedade, promovendo uma “mística do encontro” e experiências reais de comunidade. Isso só é possível com uma imagem de Deus não distante e abstrata, mas próxima, com “vísceras de misericórdia” – como revela Jesus ao nos apresentar um Deus que é Pai amoroso.
Por fim, a relação entre justiça e misericórdia, no pensamento cristão, vai além da lei e da retribuição. São João Paulo II já alertava sobre a resistência moderna à misericórdia em uma sociedade autossuficiente e individualista. Contudo, para a fé cristá, a misericórdia não enfraquece a justiça – ela a eleva e completa.
A verdadeira justiça, segundo o Papa Francisco, não separa justos e pecadores, mas busca a reconciliação, a cura e a restauração. Por isso, Deus não se limita à justiça estrita: Ele a envolve com misericórdia e oferece o perdão como oportunidade de transformação. Assim, para os cristãos, praticar a justiça é, antes de tudo, realizar a vontade amorosa de Deus, colocando as necessidades do outro acima da aplicação fria mecânica da lei.
Somos desafiados a viver uma justiça restauradora, reconciliadora e misericordiosa – que tenha no Evangelho sua fonte e, no amor concreto ao próximo, a sua realização.
