Cardeal Odilo P. Scherer
Arcebispo de São Paulo (SP)
No próximo dia 10 de dezembro, comemora-se o 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU). Essa “carta magna” dos direitos humanos foi elaborada, aprovada e proclamada depois que a humanidade passou, em menos de 50 anos, por duas terríveis guerras mundiais, que promoveram a barbárie, fizeram um número enorme de vítimas e espalharam dor, ferida e destruição em meio mundo.
A Declaração de 1948 representou uma conquista da humanidade e a expressão da vontade comum de vida civilizada e respeitosa, sem imposição de soluções violentas a ninguém, quer nas relações sociais, quer nas internacionais. Decorridos 70 anos, vale a pena perguntar, se esses direitos humanos fundamentais foram integralmente respeitados por todos os países e produziram os efeitos desejados pela assembleia das Nações Unidas que os promulgou? Lamentavelmente, a resposta é negativa; nem mesmo foi a Declaração assinada de forma unânime pelos países representados na ONU.
Mas é preciso reconhecer que a Declaração de 1948 marcou um progresso enorme no reconhecimento universal da dignidade da pessoa humana e na afirmação e defesa dos seus direitos fundamentais. Mesmo não sendo integralmente respeitados, os artigos da Declaração são a referência comum para a legislação particular dos povos, não sendo possível agir em contraste com os artigos da Declaração, sem que isso tenha consequências. Os países-membros da ONU e as organizações internacionais reconhecidas como legítimas têm o dever de zelar para que os direitos humanos afirmados pela Declaração sejam devidamente respeitados.
A leitura atenta dos 30 artigos da Declaração da ONU leva a concluir que os direitos humanos fundamentais ainda estão ameaçados, com frequência. Mais ainda: a violação dos citados direitos universais nem sempre suscita a reação esperada da parte dos governantes dos povos. Tem-se a impressão que o discurso sobre os direitos humanos, em certas circunstâncias, é silenciado ou amenizado em vista de manobras políticas e da busca de vantagens utilitaristas. Os direitos humanos acabam, não raramente, sacrificados na mesa das negociações políticas e econômicas, ou em nome do politicamente correto.
Um desses direitos humanos fundamentais ameaçados é o direito à liberdade religiosa. O artigo 18 da Declaração da ONU estabelece que “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; esse direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular”. No Brasil, a Constituição de 1988 consolidou a liberdade de crença e de culto nos artigos 5º e 19, e na lei nº 7.716, de 1989, que configura como crime a discriminação por raça, cor, etnia, religião ou nacionalidade.
No dia 22 de novembro passado, a Fundação Pontifícia “Aid to the Church in Need” (ACN – Ajuda à Igreja que Sofre), que monitora a situação da liberdade religiosa no mundo, publicou seu relatório anual e constatou que a discriminação, e mesmo a perseguição religiosa aberta, ainda são tristes e frequentes realidades no mundo que até se agravaram nos anos mais recentes. Preocupa a informação que, nada menos de 61% da população mundial, vive em países onde a liberdade religiosa não é respeitada. Isso corresponde a quase 4 bilhões de pessoas! Um em cada 5 países registra graves violações à liberdade religiosa e em 21 países há perseguição religiosa declarada! Os Continentes onde se registram os maiores problemas nesse sentido são a Ásia e a África.
De todos os grupos religiosos, os cristãos são os que mais sofrem discriminação, restrição à liberdade de religião e até perseguição aberta. No mundo, há cerca de 300 milhões de cristãos perseguidos, ou sem plena liberdade religiosa, e isso significa que, de cada 7 cristãos, um vive sem liberdade religiosa. A imprensa e as mídias sociais do Ocidente divulgaram, por vezes, episódios de violência e discriminação religiosa contra cristãos durante as guerras no Iraque e na Síria, os ataques contra templos e grupos de cristãos no Egito, Paquistão, Nigéria, Índia, Congo e Afeganistão. Geralmente, porém, as graves violações contra a liberdade religiosa não recebem a atenção devida na opinião pública. O mundo continua a ignorar os cristãos perseguidos.
Fatos de discriminação e intolerância religiosa, bem como ações de vilipêndio contra templos e símbolos religiosos cristãos e não cristãos, acontecem também em países democráticos do Ocidente, bem como no Brasil, não recebendo sempre a devida desaprovação pública. Mesmo certo discurso equivocado sobre a “laicidade do Estado”, como se este devesse ser oficialmente antirreligioso, em vez de ser a-religioso e de assegurar a todos a liberdade religiosa, pode ser expressão de discriminação religiosa. O direito à liberdade religiosa não deve ser considerado secundário, ou uma espécie de “primo pobre” entre os direitos humanos. O direito a ter religião, ou de não a ter, de a expressar e professar livremente, está estreitamente relacionado com as demais liberdades que decorrem da dignidade humana, como a liberdade de consciência e de pensamento, de opinião e manifestação.
Não é sem motivo que muitas guerras entre povos e conflitos sociais, ao longo da história, estiveram mesclados com questões religiosas: ou pela pretensão de impor uma religião à força, usando mecanismos da estrutura do Estado para isso; ou porque se reivindicava a liberdade religiosa, onde ela não existia, sendo discriminados nos seus direitos os cidadãos não alinhados com certa religião “oficial”. Onde não há respeito pela liberdade religiosa não há paz.