Morte: porque não pensei nisso antes?

Dom Ricardo Hoepers
Bispo do Rio Grande/RS
Diretor do Instituto Superior de Formação Humanística da UCPel
Presidente da Comissão Especial de Bioética da CNBB

“A morte é o destino de todos os homens. Destino inexorável, tanto que nem mesmo se sabe se ela colhe primeiro uma pessoa anciã ou uma pessoa jovem”, diz Karl Rahner em um prefácio seu, ao livro de Silvano Zuchal,[1] escrito dois anos antes de sua morte. De fato, a morte sempre foi um tema de grande interesse e inspirador de muita produção filosófica e teológica, porque exatamente, faz parte de nosso destino e interessa a todo homem. Ela tornou-se objeto de pesquisa e, na história é possível perceber as diferentes leituras e interpretações dadas a esse acontecimento dramático e intrigante[2]. Faggioni, um sacerdote, médico e professor de bioética italiano recorda que, se por um lado, de Agostinho à Heidegger houve um convite para acolher a morte com sabedoria, pois esta é uma expressão da intrínseca finitude do homem, por outro lado, percebemos que a morte é um limite extrínseco à nossa existência pessoal podendo ser comparado como um mal que vem de fora, uma diminuição da integridade da pessoa ou até mesmo como a sua destruição total[3].

O fato é que, acima dessas discussões ou especulações, milhões de pessoas, no mundo inteiro, no dia 02 de novembro, acorrem aos cemitérios para expressar sentimentos de saudades, de tristeza, de paz, de angústia, de esperança, de amor e de fé, isto é, expressões do que temos de mais humano, mas ao mesmo tempo, sentimentos sublimes que nos levam a pensar em Deus, no transcendente, no espiritual, na eternidade. Recordar os fieis defuntos é uma comemoração tradicional da Igreja Católica e, no termo “defunto” resgata o sentido mais verdadeiro da conclusão da vida biológica, não como um fim, mas como uma passagem. DEFUNCTUS, vem do latim e significa “aquele que realizou”, “que levou a termo”, “cumpriu sua vida”. Para nós cristãos, a morte foi vencida, na ressurreição de Cristo. Essa é a profissão de fé: creio na comunhão dos santos, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém! É um momento significativo que toca o profundo do ser humano, onde ele se encontra consigo mesmo, com os seus entes queridos já falecidos, recorda sua história e une os sentimentos com uma expressão de fé que dá alento e esperança na vida que há de vir.

O debate sobre os confins entre a vida e a morte não é novo, pois a humanidade sempre esteve atenta aos sinais da morte e buscou decifrar esse processo nas suas mais variadas manifestações: “dar o último suspiro”, “expirar”, “entregar o espírito”, foram expressões muito usadas para definir a chegada da morte que era vinculada ao ato de parar de respirar. Mas, talvez, nunca na história da humanidade, vivemos uma crise tão acirrada em relação a esse fenômeno natural que é a finitude da nossa existência, a ponto de tornar o processo de morte um tabu, um inimigo a ser combatido, uma realidade negada, como estão fazendo os pós-humanistas ou transumanistas[4], que acreditam na possível manipulação total dos códigos da evolução do ser humano através do uso da tecnologia, em vista do seu aperfeiçoamento, inclusive a superação da morte.

A bioética tem procurado ponderar e mediar, com o uso da razão e do diálogo multidisciplinar científico, as discussões dos transumanistas com os bioconservadores[5]. O conceito do desenvolvimento da técnica para o aperfeiçoamento do humano traz consigo tantos benefícios, mas também tantos perigos. Não se trata de uma mera presença ou um modo de fazer, mas de certo domínio que vem penetrando às raízes da própria vida, naquilo que há de mais íntimo no ser humano. O primado da técnica é o fazer e o homem corre o risco de tornar-se seu funcionário[6]. Para não correr perigo de nos tornarmos prisioneiros da ditadura da técnica e do relativismo que ela traz consigo é necessário sempre voltarmos nossa reflexão a partir da consciência da nossa vocação e discernir os perigos de reduzirmos nossa humanidade ao mero faciendum. A consciência nos remete a assegurar a dignidade humana diante desses perigos de desumanização e da tecnocracia. Para evitar assim, essa coisificação humana, que pode acontecer desde a fecundação, com a manipulação dos embriões, até a morte, como na eutanásia, o trafico de órgãos e outros abusos afins, é preciso uma constante vigília. Não é possível assimilar ingenuamente a falsa imagem de que é o homem a se auto produzir, perdendo o sentido da natural e sobrenatural da sua dignidade humana e caindo numa antropologia das circunstâncias onde a autonomia é a última palavra.

Neste mês outubro passado, por exemplo, no dia 12, além do dia de Nossa Senhora Aparecida, recordamos o dia mundial dos cuidados paliativos. Nosso Observatório de Bioética da CNBB, aqui no Rio Grande do Sul, tratou do tema dos cuidados paliativos, assessorados pela equipe de Passo Fundo e nos apontou a necessidade urgente do cuidado, como fator primordial da saúde integral do ser humano. Nos processos de final de vida há muito o que fazer, há muito que cuidar, e para isso, é importante considerar a morte como parte da vida, e não negá-la com obsessões terapêuticas que aumentam o sofrimento de quem está em fase terminal. Os extremos nos levam a antecipar a morte, como na eutanásia, ou a prorrogá-la como na distanásia. O cuidado paliativo, ao contrário, respeita a dignidade da pessoa e a sacralidade de sua vida com o conforto físico, emocional, espiritual, e integral, necessários nesta etapa primordial da vida, que é o seu fim natural.

Faggioni, analisa a atual situação do conceito de morte como fruto de uma cultura narcisista, materialista e secularizada onde a morte se tornou tanocrática e tabuística[7]. Tanocrática, porque impõe uma cultura de morte justificando que a sociedade constituída desse modo deve responder com ordem às situações de marginalidade. Os mais fracos e vulneráveis se tornaram vítimas quotidianas dessa sociedade armada e violenta, que vem  disseminando ódio e acostumando-se com a morte social. Tabuística, porque ao mesmo tempo em que se constata a morte todos os dias, ocasionada pela violência e injustiça, ela é símbolo da fraqueza e aniquilação do próprio homem, que se vê ameaçado e não aceita seu limite e finitude, tornando a morte sua maior inimiga, da qual não ousa nem falar. Ao falar da morte como tabu comprometemos nossa maneira de enfrentar o último instante da vida perdendo a dimensão humana e espiritual dessa experiência, tutelando cada vez mais à tecnologia, o controle e a programação do nosso processo de morrer.

Quando se impõe uma antropologia que fundamenta o uso do ser humano em determinadas circunstâncias para outros fins, a vida será sempre manipulada conforme os interesses do momento. Mas se for avaliada a partir de uma antropologia personalista que respeita a sacralidade da vida, não se deixará influenciar pelos fatores acidentais, mas respeitará no seu processo de declínio toda a dignidade que este momento traz consigo. Para respeitar a pessoa em cada circunstância, não é necessário saber com exatidão se esta dispõe plenamente das faculdades de pensamento e vontade, se tem capacidade de linguagem e relação, enfim qualquer justificativa que limitasse a pessoa a posse de particularidades. Ao contrário, na pessoa humana está presente, desde o seu início ao seu fim, o mesmo elemento fundamental que lhe é essencialmente próprio e que está escrito no seu ser durante toda a sua vida.

A morte continua a ser um grande mistério, indecifrável aos esquemas empíricos e inalcançável às metodologias da casuística tradicional. Sua dimensão é tal que foge aos parâmetros científicos e filosóficos do conhecimento humano. É, porém a experiência que todo o ser humano viverá um dia, e nenhuma tecnologia pode tirar o direito a morrer com dignidade, porque a morte tem seu sentido e, como mistério faz parte dos mistérios de todos os dias, o mistério de um olhar amigo ou de um sorriso forte, do mistério da bondade e solidariedade de quem nos acompanha do momento da morte até o túmulo. Como nos lembra Wladimir Jankélévitch,[8] no fim do calvário de Ivan Il’ic, no final de Anna Karenina de Tolstoi, ele nos faz pensar como o mistério da morte pode ser mal compreendido ou inteiramente mal interpretado por nós. Pensando na morte como um tabú nós a complicamos, mas podemos experimentá-la também como uma experiência simples, como as soluções da vida e do amor, ou como nossas intuições que depois dizemos: “porque não pensei nisso antes?”. Enfim, Ivan expressa-se assim, antes de morrer: “Como é bom, e como é fácil”[9]. É exatamente o nosso ato de profunda humildade diante do mistério.

[1] Silvano Zuchal, La teologia della morte in Karl Rahner, Instituto Trentino de Cultura-Pubblicazioni dell’Istituto di Scienze Religiose, EDB, Bologna 1982, 7-8.

[2] Para encontrar uma bibliografia interessante da morte nos diversos períodos da história da Idade Medieval até a Idade Contemporânea, bem como uma excelente seleção de autores que trabalham o tema da morte como Imaginário e Representação, numa leitura antropológica, cf. Michel Vovelle, La morte e l’Occidente, dal 1300 ai giorni nostri, Editora Laterza, Roma-Bari 2009, 733-738.

[3] Cf. Maurizio Pietro Faggioni, La vita nelle nostre mani, manuale di bioetica teologica, Edizione Camilliane, Torino 2009, 209.

[4] David Perarce e Nick Bostrom criaram em 1997 a WTA/H+, World Transhumanist Association/Human plus.

[5] Francis Fukuyama e Jurgen Habermas tem que essa mentalidade possa comprometer os valores mais fundamentais da humanidade e uma instrumentalização da biología humana.

[6] Cf. Umberto Galimberti, La morte dell’agire e il primato del fare nell’età della tecnica, Alboversorio, Milano 2008, 21.

[7] Cf. M. Faggioni, La vita nelle nostre mani…, 333.

[8] Wladimir Jankélévitch, La morte, Giulio Einaudi Editore, Torino 2009, 463.

[9] W. Jankélévitch, La morte…, 463.

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