Dom Geraldo Maia
Bispo de Araçuaí (MG)
Jean Paul Sartre (1905–1980), grande filósofo francês, existencialista, comunista e ateu, foi preso em 1940, durante a ocupação da França pela Alemanha. Levado para o campo de concentração de Tréveris, na Alemanha, conviveu com simpatizantes e não simpatizantes de seus ideais: cristãos leigos, padres diocesanos, dominicanos, jesuítas, dentre outros. Somente no ano seguinte ele conseguiria escapar daquela sucursal do inferno. Nos lugares mais cruéis, quando nossa humanidade é desafiada, desenvolvemos uma das mais belas de nossas características: o diálogo com o diferente, que faz brotar uma fonte nova em nossa existência, ainda que frágil, fortalecendo nossa dimensão humana.
Os padres planejavam pedir autorização aos administradores do campo de concentração para celebrar a Missa de Natal de 1940, ali, naquela nova situação de periferia do mundo. Foi Sartre quem teve a brilhante ideia de montar um teatro para tentar unir as mais diversas tendências ideológicas e religiosas daquele inóspito lugar. E foi ele mesmo quem escreveu o “Auto de Natal”, intitulando-o Barioná. Além disso, dirigiu os sessenta atores, supervisionou os cenários e figurinos e interpretou um dos personagens, o mago Baltazar. Todo esse esforço foi realizado em apenas seis semanas. A peça foi apresentada no Stalag 12D, com três horas e meia de duração, nos dias 24, 25 e 26 de dezembro de 1940, para cerca de dois mil prisioneiros em cada apresentação.
A peça conta a história de um chefe de uma aldeia da Judeia, em tempos da dominação romana. Os dominadores decretaram o aumento dos impostos. Barioná reúne seus concidadãos e os exorta a não ter mais filhos, em resposta aos desmandos da dominação. Essa seria a tática para diminuir os impostos pagos aos romanos. Daí a pouco, sua mulher, Sara, lhe comunica que estava grávida e, no mesmo dia, chega a notícia de que, na aldeia vizinha de Belém, nascera um menino, que fora “enfaixado e deitado num presépio”, e que Magos vindos do Oriente e sábios creditados em Jerusalém o anunciam como sendo o Messias.
Barioná entra num dilema: irá matar esse recém-nascido, como pensara inicialmente, ou irá, ao invés disso, protegê-lo da violência dos Romanos que, alarmados pela agitação reinante na região, decidiram também suprimi-lo? Barioná decide proteger a criança. Unido aos seus aldeãos, ele deterá os romanos até que Maria, José e o recém-nascido consigam escapar. As palavras finais do herói são comovedoras. Dirigindo-se à sua esposa, antes de partir para o combate, Barioná confessa que mudou de opinião e quer que ela dê à luz o seu filho e que lhe diga, à hora do nascimento, que o seu pai morreu na alegria. Segundo o testemunho do Pe. Marius Perrin, companheiro de Sartre no cativeiro, “os homens de Barioná correm talvez para a sua morte (…) para que a esperança dos homens livres não seja assassinada”.
Sartre mesmo descreveu sua aventura artística: “A minha primeira experiência teatral foi particularmente afortunada. Enquanto estive preso na Alemanha em 1940, escrevi, pus em cena e interpretei uma obra de Natal, a qual, conseguindo esquivar à vigilância do censor alemão, através de símbolos simples, se dirigia aos meus companheiros de cativeiro […]. Naquela ocasião, […] por cima das luzes das gambiarras e falando-lhes desde a sua condição de prisioneiros, vi-os de repente tão realmente silenciosos e atentos que compreendi o que o teatro tinha de ser: um grande fenômeno coletivo e religioso”.
Escrevendo à sua esposa, Simone de Beauvoir, Sartre assim se expressou: “Seguramente devo ter talento como autor dramático: escrevi uma cena do anjo que anuncia aos pastores o nascimento de Cristo, que deixou a todos sem respiração (…) inclusive a alguns saltaram-lhes as lágrimas”. E ainda: “Parece que fiz um Mistério de Natal muito comovente, ao ponto de alguns dos atores, ao declamarem, lhes saltarem as lágrimas”. Depois de a vida ter voltado ao normal, o autor da peça proibiu que ela fosse reapresentada. Em 2005, por ocasião do centenário do nascimento de Jean-Paul Sartre, a editora Gallimard publicou uma edição comemorativa do teatro completo do filósofo francês, incluindo, pela primeira vez, o drama de Barioná.
O Pe. Marius Perrin deu um belo testemunho sobre os efeitos desta peça: “Depois de Barioná, tudo mudou. Foi como se Sartre tivesse introduzido um ‘vírus’. Foi como se, graças a ele, ‘um longo período de incubação’, em que estivemos impedidos de nos revoltar, tivesse finalmente chegado ao fim”. O filósofo e escritor francês Bernard-Henry Lévy constatou que, também para Sartre, Barioná representou “a verdadeira virada na vida e na obra […] é desta experiência do Stalag e da elaboração da peça nesse local, que data o nascimento de um segundo Sartre, efetivamente messiânico, otimista, engagé num sentido novo do termo e que volta subitamente as costas à bela metafísica pessimista que era como um salvo-conduto, uma vacina, contra os desvarios políticos”.
Neste Natal, acolhamos o Salvador, “para que a esperança dos homens livres não seja assassinada”, como nos ensinou Barioná, o personagem criado por Sartre, no seu “Auto de Natal”. O mundo precisa da esperança que não decepciona e nem ilude, mas salva a humanidade. Diante das estruturas de morte, de violência contra as minorias e contra o mundo criado, a esperança nos aponta um horizonte que descortina uma nova humanidade e um mundo novo, onde haverá de reinar a justiça, a liberdade, a solidariedade e a paz, como cantam os devotos da Bandeira do Divino, expressão da religiosidade popular imortalizada na composição de Ivan Lins:
A bandeira acredita/ Que a semente seja tanta/ Que essa mesa seja farta/ Que essa casa seja santa, ai, ai./ Que o perdão seja sagrado/ Que a fé seja infinita/ Que o homem seja livre/ Que a justiça sobreviva, ai, ai.
Assim como os três reis magos/ Que seguiram a estrela guia/ A bandeira segue em frente/ Atrás de melhores dias, ai, ai./ No estandarte vai escrito/ Que ele voltará de novo/ Que o rei será bendito/ Ele nascerá do povo, ai, ai.
