Dom Genival Saraiva
Bispo de Palmares – PE
A celebração do Natal sempre dá ao ser humano uma oportunidade de fazer uma profunda reflexão a respeito da sua condição e da sua vocação. A condição humana não tem em si a razão de sua existência e sua vocação tampouco encontra uma explicação em si mesma. Com efeito, a pessoa humana é relacional, perante Deus e frente aos seus semelhantes. Embora a filosofia e a sociologia considerem o ser humano social, por natureza, as relações entre as pessoas acontecem por razões que vão além das expressões sociais. Na verdade, o espírito gregário entre os seres irracionais e a natureza social das pessoas têm a marca de Deus. De fato, ao criar o primeiro homem e a primeira mulher, conforme o Gênesis, Deus colocou neles a nota distintiva da semelhança e o germe do relacionamento e da convivência. Desde o tempo do paraíso terrestre, mesmo ofuscado pela ação do pecado, persistiu o traço de Deus na vida humana, por isso, o Gênesis, ao se referir à criação do homem e da mulher, os vê como imagem e semelhança de Deus.
Todavia, essa condição de imagem e semelhança adquiriu, ontológica e teologicamente, sua expressão mais significativa e mais profunda com a encarnação de Cristo porque Ele se tornou um de nós. Por isso, o Natal é a celebração da humanização de Cristo. Com sua encarnação e nascimento, Cristo passou a viver a condição humana de qualquer criança, adolescente, jovem e adulto. Desde o início da história da Igreja e da teologia, houve leituras errôneas a respeito de Cristo e de sua natureza. “O grande Concilio de Calcedônia, no ano 451 da era cristã, afirmou que Jesus é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus, e que suas duas naturezas são assim unidas, sem mistura, confusão, separação ou divisão, cada natureza retendo seus próprios atributos. A humanidade real de Jesus tem sido atacada principalmente em dois aspectos. A Igreja primitiva teve de lutar contra a heresia do docetismo, a qual ensinava que Jesus não tinha um corpo físico real ou uma verdadeira natureza humana. Essa doutrina argumentava que Jesus apenas ‘parecia’ ter um corpo, mas na realidade ele era uma espécie de ser fantasmagórico. Justamente contra isso, João declarou veementemente que aquele que negasse que Jesus realmente se manifestou na carne era do Anticristo. A outra grande heresia que a Igreja rejeitou foi a heresia do monofisismo, a qual argumentava que Jesus não tinha duas naturezas, mas apenas uma. Essa natureza única não era totalmente divina nem totalmente humana, mas um misto de ambas. Essa natureza era chamada ‘teantrópica’. A heresia do monofisismo defende uma natureza humana deificada ou uma natureza divina humanizada.”
Com a encarnação do Filho de Deus, que se tornou um de nós, cumpriu-se a promessa de sua humanização, conforme a profecia de Isaías: “Eis que a jovem conceberá e dará à luz um filho e lhe porá o nome de Emanuel.” (Is 7,14) Na Carta aos Filipenses, São Paulo aprofunda esse tema da humanização de Cristo: “Ele, existindo em forma divina, não se apegou ao ser igual a Deus, mas despojou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano. E encontrado em aspecto humano, humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte – e morte de cruz!” (Fl 2,6-8)
Ao humanizar-se, Cristo eleva o ser humano à dignidade divina que jamais alcançaria por seus méritos. Num de seus sermões, o Papa São Leão Magno (séc. V) ensina a esse respeito: “Toma consciência, ó cristão, da tua dignidade. E já que participas da natureza divina, não voltes aos erros de antes por um comportamento indigno de tua condição.” A vocação à divinização engrandece, sobremaneira, a pessoa humana, e, ao mesmo tempo, a responsabiliza, enormemente, porque deve corresponder às suas exigências, mediante uma ilibada conduta de vida.