O Cordeiro que tira o pecado do mundo

“Convertei-vos e crede no evangelho” foram as palavras repetidas na quarta feira de cinzas em todas as celebrações da Igreja Católica no mundo inteiro. Foram com estas mesmas palavras que Jesus, segundo o evangelho de Marcos, começou sua pregação na Galiléia: “Depois que João foi preso, Jesus veio para a Galiléia, proclamando a Boa Nova de Deus: completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no evangelho”(Mc 1,15).

No último artigo para essa coluna refletimos com São Paulo sobre a triste condição humana dominada pelo pecado. Mas a descrição de Paulo da situação de desgraça a que o pecado conduziu a humanidade tem o objetivo de ressaltar a figura redentora de Jesus. Assim: “Entretanto, o dom da graça foi sem proporção com o pecado. Pois, se pelo pecado de um só toda a multidão humana foi ferida de morte, muito mais copiosamente se derramou, sobre a mesma multidão, a graça de Deus, concedida na graça de um só homem, Jesus Cristo”(Rom 5,15). Ainda: “Por um só homem que pecou, a morte começou a reinar. Muito mais reinarão na vida, pela mediação de um só, Jesus Cristo, os que receberam o dom gratuito e transbordante da justiça”( Rom. 5,17). A condição humana, pois, é uma condição de natureza pecadora, mas admiravelmente resgatada. Todos nós vivemos em uma atmosfera poluída pelo pecado, mas, ao mesmo tempo, temos á disposição, como dom gratuito do Pai, a vida que em Cristo, pelo Espírito, nos é permanentemente oferecida.

Esta é a Boa Nova de Deus: em Cristo, seu Filho, Deus veio a nós para resgatar-nos, purificando-nos do pecado e curando na raiz nossa enfermidade. O amor de Deus é infinitamente maior que nossa culpa; este amor se mostra infinito nisso: “dificilmente alguém morrerá por um justo; por uma pessoa muito boa, talvez alguém se anime a morrer. Pois bem a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós quando éramos ainda pecadores”(Rom 5,7-8). “Para transmitir ao homem o rosto do Pai, comenta João Paulo II, Jesus teve não apenas de assumir o rosto do homem, mas de tomar inclusive o « rosto » do pecado: « Aquele que não havia conhecido pecado, Deus O fez pecado por nós para que nos tornássemos n’Ele justiça de Deus » (2 Cor 5,21). Esta é uma troca de incomensurável amor: deu-nos seu rosto de Filho tomando para si nosso rosto desfigurado pelo pecado.A cruz de Cristo se torna assim o momento em que Deus vence a inimizade do ser humano, tirando-lhe de dentro a resistência ao seu amor.

No momento mesmo em que nosso pecado caia sobre Ele, Ele entrava em comunhão com o núcleo mais profundo de nosso ser, e em ato de extremado amor por nós, dissolvia, através de sua entrega ao Pai, o pecado que nos mantinha longe de Deus. São Lucas, ao descrever as tentações de Jesus, encerra a narrativa assim: “Terminadas todas as tentações, o diabo afastou-se dele até o tempo oportuno”(Lc 4,13). O tempo oportuno foi, sem dúvida, o momento da paixão e morte. Haverá deserto maior que o da Cruz? Ali Jesus sentiu sede, ali os reinos da terra pareciam triunfar definitivamente contra o reino pregado por Jesus, ali ele ouviu algo semelhante à sugestão do Diabo no pináculo do templo: “se és o Filho de Deus lança-te daqui abaixo”(Lc 4, 9), pois os que passavam perto da Cruz o insultavam: “Se és o Filho de Deus desce da Cruz” (Mt 27,40). “Do mesmo modo zombavam de Jesus os sumos sacerdotes e os anciãos, dizendo: a outros salvou, a si mesmo não pode salvar! É rei de Israel: desça agora da Cruz e acreditaremos nele. Confiou em Deus, que o livre agora, se é que o ama! Pois ele disse: Eu sou Filho de Deus”(Mt 27,41 e 43). O milagre foi Jesus não ter descido.  Ele permaneceu fiel e disse palavras jamais ouvidas de lábios humanos: “Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que fazem”.

O último ato de Jesus é assim descrito por São João: “Depois disso, sabendo Jesus que tudo estava consumado, e para que se cumprisse a Escritura até o fim, disse: ‘tenho sede’! Havia ali uma jarra cheia de vinagre. Amarraram num ramo de hissopo uma esponja embebida em vinagre  e a levaram à sua boca. Ele tomou o vinagre e disse: está consumado’. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito “(Jo 19,25-30). Os teólogos entendem essa entrega do espírito como a doação do Espírito, o Santo Pneuma. O vinagre oferecido fez parte da zombaria, como o entende São Lucas (Lc 23,36-37). A narrativa de João diz que Jesus toma o vinagre. Jesus toma nosso vinagre, o vinagre do desprezo, e, morrendo, oferece o Espírito, o Espírito de amor. No evangelho de Marcos há um fato que mostra bem a qualidade e a força amorosa da entrega de Jessus. Ei-lo: “quando o centurião, que estava em frente dele, viu o modo como Jesus tinha expirado, exclamou: ‘na verdade, este homem era Filho de Deus’”( Mc 15,39). Há uma passagem no evangelho de João em que Jesus afirma: “ninguém me tira a vida, mas eu a dou por própria vontade. Eu tenho poder de dá-la, como tenho poder de recebê-la de novo”(Jo 10,18).

A morte de Jesus, embora lhe tenha sido imposta pelos nossos pecados, foi assumida como um ato de plena liberdade, por nosso amor, para nossa redenção. Por isso: “convertei-vos e crede no evangelho”. Mas, o que significa converter-se?  Sobre isso refletiremos no próximo artigo.

Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues

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