O Fado em Santo Tomás de Aquino 

Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)

 

A palavra fado costuma evocar, em nossa cultura, a ideia de destino inevitável, algo já escrito e do qual ninguém poderia escapar. Muitos imaginam que tudo o que acontece — as alegrias e as dores, as vitórias e os fracassos — está previamente determinado, como se a vida fosse movida por forças cegas ou pela simples sorte. Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica (I, q.116), aborda precisamente essa questão, buscando esclarecer o verdadeiro sentido do fado à luz da fé e da razão, e mostrar que a história humana se desenrola sob a Providência divina, sem anular a liberdade do homem. 

Para o Doutor Angélico, o fado não é um poder independente nem uma necessidade absoluta. Ele o define, com Boécio, como “uma disposição inerente às coisas móveis, pela qual a Providência sujeita tudo às suas ordens”. Ou seja, o fado é o modo como a Providência divina atua no mundo criado. Enquanto a Providência é o plano eterno de Deus, a sabedoria com que Ele concebe e orienta todas as coisas ao seu fim último, o fado é a execução desse plano no tempo, realizada por meio das causas segundas: a natureza, os acontecimentos e as decisões humanas. Assim, Deus governa o universo não apenas de forma direta, mas também indiretamente, por meio das criaturas, servindo-se delas como causas segundas, livres e ordenadas, para a realização de seus desígnios. 

Assim, o fado não é o “destino cego” dos pagãos ou dos astrólogos. Para Santo Tomás, a vida humana e as ações do homem não estão submetidas à influência determinante dos astros, nem dependem dos acasos da sorte, mas se encontram ordenadas pela vontade sábia e amorosa de Deus. Tudo o que existe e acontece possui um lugar na ordem da Providência divina, mesmo aquilo que, aos nossos olhos, parece fortuito ou imprevisto. Há acontecimentos que, do ponto de vista humano, parecem obra do acaso; porém, na perspectiva de Deus, integram-se harmoniosamente em seu desígnio de amor, dentro de um plano maior, onde liberdade e Providência se unem sem contradição. 

O fado, entendido de modo cristão, pode ser comparado ao “destino” apenas se este for compreendido como o caminho ordenado por Deus para o bem das suas criaturas, um caminho que envolve tanto a ação das causas naturais quanto a liberdade das causas racionais. Porém, se o “destino” for concebido como uma força cega ou uma necessidade inevitável, que elimina a liberdade e a graça, então ele se opõe totalmente à visão de Santo Tomás. O Aquinate rejeita precisamente essa noção de fatalidade absoluta, que reduziria o ser humano a um mero instrumento passivo diante das forças do cosmos, negando-lhe a dignidade de cooperador livre nos desígnios da Providência divina. 

A liberdade humana, para Santo Tomás, tem um lugar essencial dentro da Providência. Deus é o autor de tudo, mas não elimina a autonomia das criaturas. Ele age nas causas segundas — inclusive na vontade humana — sem violentá-las. Em outras palavras, a Providência divina é tão perfeita que inclui a liberdade do homem dentro do seu plano. O ser humano é realmente livre para escolher o bem ou o mal, e suas decisões fazem parte da história que Deus, em sua sabedoria, já conhece e ordena para o bem maior. 

Por isso, falar em fado, para o cristão, não é negar a liberdade, mas reconhecê-la dentro de uma ordem maior. Tudo o que nos acontece pode ter sentido, porque está sob o olhar de Deus. Não vivemos à mercê do acaso nem presos a uma fatalidade impessoal, mas conduzidos pela Providência que transforma até os erros humanos em oportunidades de graça. O “fado” de Santo Tomás é, afinal, o nome filosófico da confiança, ou seja, viver sabendo que o universo não é um caos, mas uma história guiada pelo amor e pela sabedoria de Deus. 

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