O fundamentalismo laicista (I)

A distinção entre fé e razão está na origem do que se chama hoje Estado laico, postulado fundamental do princípio democrático. A religião não pode ser imposta. Donde o ocidente rejeitar a teocracia tão forte nos países de tradição islâmica. O Estado, entretanto, enquanto guardião dos direitos humanos e promotor do bem comum, não pode ser amoral.

Não pode impor os preceitos de uma determinada religião, mas deve garantir a saúde da comunidade humana deixando se reger pelos preceitos morais da reta razão e, como pretendia Aristóteles, estimular a prática das virtudes pela educação. As religiões devem em uma democracia ter seu espaço e sua liberdade preservados e têm a obrigação de oferecer sua contribuição para o bem das pessoas e da sociedade motivando a prática do bem e contribuindo para uma organização justa da sociedade. Mas não podem se servir do Estado para impor suas crenças. Quando se trata dos princípios morais que devem reger a vida da sociedade os argumentos devem ser da ordem da razão. Não posso exigir que se façam leis porque a bíblia assim ensina. A isso se chama de fundamentalismo religioso. O bom cristão sabe, entretanto, que se a bíblia assim ensina, há sólidas razões que justificam esse ensinamento, razões que podem ser esclarecidas pela humana inteligência. “Não matar” significa garantir a vida.É preceito dado por Deus na revelação mosaica. Está implícito nesse preceito que não se pode fazer o aborto. A aplicação do princípio em todos os seus desdobramentos é tarefa da razão. Levanta-se então uma questão de ordem filosófica: em que consiste a vida? E uma questão científica: quando começa a vida de um ser humano?

Não existe nenhum fundamentalismo em defender a vida humana desde a concepção. A razão filosófica e científica dá pleno amparo à posição anti-abortista.  Assim poderemos passar por todos os preceitos do decálogo, mostrando que todos eles explicitam exigências da própria dignidade humana e que guiar-se por eles só enaltece a pessoa e torna possível uma convivência humana saudável e feliz. A Igreja contribui para a paz social, sobretudo motivando e educando os fieis para uma vida virtuosa.  Os cristãos, como cidadãos, empenham-se para que se façam leis que promovam a vida e os valores da dignidade humana. E isto eles o devem fazer, motivados pela fé, mas com argumentos de razão. O fato de suas posições em matéria de moral estarem contidas na revelação não significa que elas sejam destituídas de razões, pelo contrário está a indicar que são essas posições as mais razoáveis do ponto de vista da racionalidade que deve presidir a vida humana em sociedade. O fato de uma determinada posição em matéria de moral provir de uma inteligência não-religiosa não a faz mais verdadeira que as outras. Ela pode estar eivada de preconceito anti-religioso e tenderá a negar que os valores morais são objetivos, anteriores á própria liberdade, ensejando posições relativistas. O preconceito pode assim ser formulado: “tudo o que vem da religião é imposição que vem de fora a atenta contra a autonomia e liberdade do ser humano; obriga o ser humano a abdicar de sua dignidade de sujeito”.

Esta posição está na raiz do ódio à religião e, no ocidente, à própria Igreja e às suas instituições maiores. O Estado laico é uma conquista da racionalidade aplicada à política. Quando na Idade Média Santo Tomás elaborou com clareza a distinção entre fé e razão, afirmando a capacidade natural de encontrar a verdade e garantindo à filosofia – ao esforço da razão – sua autonomia no procurá-la, ele estava a lidar com a semente da modernidade. Em Tomás de Aquino, que conheceu bem Aristóteles, abre-se um caminho imenso de conhecimento para a inteligência humana que tem como objeto próprio a essência e as estruturas da existência humana e do universo. A modernidade entrou de cheio nesse universo e se propôs repensar o mundo, conhecê-lo e reorganizá-lo com a luz da própria razão. À reflexão filosófica sucedeu o desenvolvimento das ciências e sua instrumentalização pela técnica, o que foi consolidando a convicção de  que a humanidade tinha nas mãos o governo do mundo e a possibilidade de organizá-lo de forma sempre mais favorável. Sonhou-se com o mundo iluminado pela razão.

Nesse contexto a religião chegou a ser considerada atraso, fase primitiva da história do homem. Ser ateu tornou-se uma forma de afirmação da total autonomia da razão e da liberdade. O laicismo se caracteriza pelo desprezo da religião e das instituições religiosas. Pretende uma cultura totalmente secularizada, sem referências ao mistério e à transcendência. A religião deve ser confinada á vida privada, devendo o espaço público ser a-religioso. E a confusão se acentua quando se julga que opções éticas de origem religiosa são destituídas de racionalidade. (continua).

Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues

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